Maurice Herbert Jones (*)
Os burocratas têm a última palavra. Esta é a moral da história de Kafka; se eles dizem não, ele não pode entrar. Se tivesse tido mais do que essa esperança passiva, ele teria entrado, e sua coragem para ignorar os burocratas teria sido o ato libertador.
Muitos, diz Erich Fromm, são com o velho de Kafka. Eles
esperam, mas não lhes cabe agir segundo o impulso do coração e, enquanto os
burocratas não lhes dão o sinal verde, eles prosseguem esperando.
Os mais bem informados opositores do processo que temos
chamado de ”atualização do espiritismo”, não negam a necessidade eventual dessa
medida, enfaticamente recomendada por Kardec, e sim a competência dos humanos
encarnados para realizá-la. Segundo eles, cabe exclusivamente aos chamados
espíritos superiores, detentores dos direitos autorais do Espiritismo, qualquer
iniciativa neste sentido. De acordo com esta visão, a nós outros, encarnados,
restaria aguardar passivamente alguns “sinais do céu” que nos autorizariam a receber deles os conteúdos
atualizadores.
O paralelo é evidente. O processo idolátrico caracteriza-se
especialmente pela submissão simbiótica e preocupação neurótica de alienar-se,
esvaziar-se em benefício do ídolo, seja ele uma pessoa, uma ideia ou uma instituição.
No caso em exame, fica clara a disposição idolátrica dos que recusam aos
espíritos encarnados autoridade ou capacidade para administrar o necessário
processo de atualização.
Não conseguimos encontrar na obra e no exemplo de Kardec
nenhum amparo para esta estranha e imobilista posição. Como estacionar, como
interromper o caminho como se tivéssemos alcançado o inalcançável? Como ficar à
espera da hipotética e discutível iniciativa de uma entidade virtual,
indefinível que denominamos espíritos superiores?
Kardec era ação, iniciativa. A porta estava aberta e ele
destemidamente a atravessou. Construiu o Espiritismo utilizando material já
recolhido por outros pesquisadores e, a partir daí, interrogando direta e metodicamente
vários Espíritos. Nunca se afirmou, porém, que as lúcidas e instigantes
perguntas com as quaisKardec partejava o espiritismo nascente fossem ditadas ou
sugeridas pelos espíritos o que, segundo me parece, atesta que a condução do
processo pertencia a ele, Kardec, tendo os espíritos como assessores ou como“elementos
de instrução”. No que se refere à elaboração do Livro dos Espíritos, isto fica
claro em “Obras Póstumas – 2a Parte – Minha iniciação no Espiritismo” onde
Kardec, depois de se dar conta das limitações individuais dos Espíritos com os
quais dialogava, afirma: “Incumbe ao observador formar o conjunto, coordenando,
colecionando e conferindo, uns com os outros, documentos que tenha recolhido.
Procedi com os espíritos como teria feito com os homens; considerei-os, desde o
menor até ao maior, como elementos de instrução e não como reveladores
predestinados.”
Mais adiante, no mesmo capítulo, referindo-se ao processo de
revisão dos originais de O Livro dos Espíritos, Kardec assevera: “Tendo-me
relacionado com outros médiuns, sempre que se me oferecia ocasião, a aproveitava
para propor algumas das perguntas que me pareciam mais espinhosas. Foi assim
que mais de dez médiuns prestaram a sua assistência ao trabalho e foi da
comparação e da fusão de todas essas respostas, coordenadas, classificadas e
muitas vezes remoídas no silêncio da meditação, que formei a primeira edição de
O Livro dos Espíritos, aparecida a 18 de abril de 1857.” (grifos meus) Considerando
as respostas dos espíritos como opinião pessoal de cada um deles, Kardec as
censurava, comparava e fundia, isto é, editava estas respostas à luz do seu
conhecimento e da sua sensibilidade, fixando assim sua primazia no processo.
O Espiritismo é intrinsecamente dinâmico e sujeito,
portanto, a um permanente processo de atualização cuja condução é, sim,
responsabilidade de espíritos encarnados assim como já o fora sua codificação.
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(*) Maurice Herbert Jones foi um pensador espírita
pernambucano radicado em Porto Alegre-RS, presidente da Federação Espírita do
Rio Grande do Sul, de 1978 a 1984, um dos criadores do ESDE (Campanha de Estudo
Sistematizado da Doutrina Espírita), presidente da Sociedade Espírita Luz e
Caridade (atual Centro Cultural Espírita de Porto Alegre) por vários mandatos,
Assessor da Presidência da CEPA-Associação Espírita Internacional, desencarnado
em 20.06.2021, aos 92 anos.
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