Kardec, raça e ciência, por Matheus Laureano
Matheus Laureano é Mestre em Psicologia Social, escritor, Presidente da ASSEPE (www.assepe.org.br).Delegado da CEPA em João Pessoa-PB e membro da CEPABrasil, <mattheuslaureano@gmail.com>Matheus Laureano é Mestre em Psicologia Social, escritor, Presidente da ASSEPE (www.assepe.org.br) . Delegado da CEPA em João Pessoa-PB e membro da CEPABrasil, <mattheuslaureano@gmail.com>
O Espiritismo é uma doutrina em
progresso. O Espiritismo também é uma doutrina pedagógica. É preciso considerar
essas duas afirmações para um melhor entendimento do Espiritismo, pois se
tivermos uma acepção de que o Espiritismo é algo pronto e acabado, não tem o
que discutir, melhorar e nem mesmo modificar quaisquer das ideias e teorias espíritas.
É uma doutrina pedagógica porque busca, principalmente, a melhoria da sociedade
e dos indivíduos por meio da educação, do diálogo e da busca pela verdade.
Assim como os grandes gênios da
humanidade, Kardec foi um homem de contradições. Primeiramente há que
considerar a Doutrina Espírita uma obra muito mais dele que dos Espíritos
desencarnados. Foi ele quem tomou todas as ações de pesquisar, que mensagens
deveriam conter nas obras, quais foram os Espíritos escolhidos, quais eram
os(as) médiuns de confiança e, mais que tudo, desenvolveu a teoria espírita
baseada em seu arcabouço teórico e histórico. A genialidade de Kardec, entre
outras coisas, se demonstra na capacidade que ele teve de se deparar com o
fenômeno espírita, oferecer uma compreensão de toda a sua magnitude e buscar
por toda a sua vida dar corpo pedagógico, tornando-o simples para a humanidade.
Embora tudo isso seja a sua
essência, Kardec era um homem inserido em determinado contexto e dele foi
prisioneiro também. Em diversas oportunidades ele foi além de seu tempo,
tornando o mundo mais palpável e compreensível, uma vez que abriu o véu da
obscuridade e trouxe luz aos fenômenos sobrenaturais, naturalizando a realidade
espiritual.
Dito estes pontos breves,
introdutórios e importantes para o que se segue, vamos ao que nos propomos para
esse breve artigo. Antes, quero avisar que o texto é um pouco duro. Não foi
fácil escrevê-lo. Tenho em Kardec uma admiração gigante, foi por conta dele que
o espírito crítico se iniciou em mim, assim como a vontade de estudar e ler
ainda mais. Não foi fácil quando descobri que Kardec foi racista e isso já tem
mais de 20 anos, e depois de um tempo refletindo consegui compreender que somos
todos seres em evolução e a única coisa de Kardec que morreu em mim, foi a sua
sacralização, e nasceu um ser incrível e cheio de contradições, assim como
todos nós.
Kardec foi racista! Sim, Kardec
foi racista e isso tem um grau importante (e devastador) em sua obra. Quem
estuda Kardec em seus livros e textos, percebe que tudo sempre foi pautado pela
fraternidade e entendimento de que a educação é o meio de transformação da
sociedade; sempre buscou o respeito, a igualdade, a liberdade e tudo o que pode
engrandecer a vida humana. Um humanista nato. No entanto…
O primeiro texto (1) que
exemplifica o racismo de Kardec é intitulado “A Perfectibilidade da Raça
Negra”, foi publicado na edição de abril de 1862, da “Revue Spirite”. Esse
texto é uma busca, por meio da Frenologia, de inserir a sociedade europeia como
o suprassumo do progresso humano à sua época. Eu poderia dizer, como muitos já
tentaram, que foi uma tentativa de compreender as diferenças sociais por meio
da Frenologia, mas como verão adiante, Kardec vai deixar claro a sua predileção
pela exaltação à sociedade europeia, mesmo que lance mão de ideias absurdas.
Nesse referido texto (2) diz
Kardec: “Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos. Como
Espíritos, são inquestionavelmente uma raça inferior, isto é, primitiva. São
verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de
cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas
tendências, o que já representa um progresso que levarão para outra existência,
e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório de melhores condições”.
A maneira como Kardec se refere
aos negros, assemelha-se a alguém relatando que está levando um cachorro a um
centro de adestramento para modificar alguns hábitos e se comportar de acordo
com o que estabelecemos como norma de conduta. Trazendo para uma perspectiva de
pensamento contemporâneo, há uma desumanização do negro, em que se assemelha a
animais que precisam ser domados para viverem em sociedade.
Em outro trecho do mesmo texto
(3), ele diz: “[…] a raça negra, enquanto raça negra, corporalmente falando,
jamais atingirá os níveis das raças caucásicas, mas como Espíritos é outra
coisa: pode tornar-se e tornar-se-á aquilo que somos. Apenas necessitará de
tempo e de melhores instrumentos. Eis por que as raças selvagens, mesmo em
contato com as raças civilizadas, ficam sempre selvagens. Entretanto, à medida
que as raças civilizadas se desenvolvem, as selvagens diminuem, até o
desaparecimento completo, como desapareceram as raças dos caraíbas, dos
guanches e outras. Os corpos desapareceram, mas em que se transformaram os
Espíritos? Alguns talvez se achem entre nós”.
Como se diz no ditado popular,
Kardec “morde e assopra”. Ao mesmo tempo em que rebaixa os negros indicando que
nunca alcançarão a evolução espiritual dos brancos enquanto encarnados em
corpos negros (por conta da constituição física), coloca um fio de esperança na
evolução espiritual, que é se transformar em um europeu com as sucessivas
reencarnações, branqueando a raça negra até o ponto em que ela desapareça.
Eugenia! Vale salientar que essa ideia de branqueamento da população negra foi
muito recorrente no século XIX, inclusive no Brasil, em que o governo
incentivava a miscigenação e a vinda de europeus para ocupar o Brasil para
branquear a população no intuito de ela se parecer mais com a europeia. Além de
cruel, evidencia uma percepção muito rasa e racista acerca das diferentes
culturas.
Kardec ou não sabe, ou esconde o
processo de desaparecimento de sociedades nativas pelo mundo por meio de
matanças perpetradas pelos caucásicos europeus em busca de expandir seus
comércios e de dominar o mundo por meio da força e da escravidão. A escravidão
existia também na África, mas nenhum povo foi capaz de tornar a escravidão a
maior fonte de renda do que o Cáucaso. Com a dominação europeia os povos
nativos eram mantidos em escravidão e os brancos surravam, estupravam, matavam
e torturavam diariamente para manter a produção, enquanto em casa rezavam com a
bíblia próximos a uma mesa farta, produto dos seres humanos escravizados e
famintos que sofreram de tudo para que o cristão branco europeu pudesse deitar
a cabeça tranquilamente todas as noites. O civilizado branco foi o principal
responsável pelo extermínio de dezenas de povos nativos pelo mundo.
Neste ponto, Kardec sofria ou de
uma ignorância imensa, ou de um eurocentrismo patológico que não o deixou
enxergar além do centro de Paris. Digo isso porque várias pessoas ao escreverem
sobre o racismo de Kardec pensam que Kardec nunca viu um negro, que não havia
negros na França, que só se sabia de notícias, mas é um ledo engano.
Os negros estão na Europa desde o
final do século XV, não somente como serviçais, mas também em outras profissões
e sendo recebidos com respeito e honraria quando enviados por franceses brancos
de suas diversas colônias. Em 1687, o rei Luís XIV recebeu um negro, designado
por franceses dominicanos dizendo que se tratava de um herdeiro do trono do
reino de Assine (Costa do Marfim, África). Tratado com honra real, ele foi
batizado pelo bispo Bousset e teve como padrinho o próprio rei. No final do
século XVIII alguns poucos negros eram enviados à Europa para estudar ou terem
treinamento religioso (4). Além disso, era muito comum as famílias ricas terem
serviçais negros(as) para todos os tipos de trabalho. Então, Kardec não somente
viu negros(as), mas teve oportunidade de conhecer, conversar e aprender sobre
as sociedades africanas, pois a presença negra na França era comum.
Em agosto de 1864, na “Revue
Spirite”, Kardec também toca no assunto sobre a superioridade da raça branca
sobre as demais raças (5). Na “Revue Spirite”, de fevereiro de 1867, na seção
variedades, Kardec dispõe acerca de um homem negro, cego e escravo que tinha
aptidão de tocar qualquer música, uma vez tendo-a escutado. Desde músicas
populares até as mais difíceis músicas clássicas. Para dar explicação à luz da
Doutrina Espírita, Kardec diz que “como a raça negra em geral, e sobretudo no
estado de escravidão, não brilha pela cultura das artes, há que concluir que o
Espírito de Tom não pertence a essa raça, mas que nela se encarnou como
expiação ou como meio providencial de reabilitação dessa raça”. Mais adiante
diz também que a Lei da Reencarnação vem trazer a fraternidade universal e que
é inconcebível que haja preconceito contra qualquer pessoa (6).
Em “A Gênese”, Kardec utilizava
como sempre, do conhecimento científico da época e discorre dizendo que a
espécie humana não teve um só princípio, mas diversos e espalhados pelo globo.
Exemplifica isso falando que as “diferentes” raças tiveram origens próprias e
de forma simultânea ou sucessivamente em diferentes partes do mundo (7). Até
para criticar a versão bíblica acerca de Adão, Kardec diz que “Não se
conceberia, pois, que esse tronco tenha tido como descendentes povos numerosos
e tão atrasados, de uma inteligência tão rudimentar, que beiram, ainda em
nossos dias, a animalidade” (grifos nossos).
Então, vamos refletir um pouco…
Kardec dizia que a raça negra estava na infância espiritual, e em “A Gênese”
diz que as raças surgiram simultaneamente ou sucessivamente. Isso quer dizer
que o corpo negro é destinado exclusivamente às primeiras encarnações? Ou que
Espíritos escolhem ou são levados a reencarnar em corpo negro por não ter
inteligência e moral suficiente para encarnar em um corpo branco? Ou que Deus
escolheu corpos para sofrimento e corpos para desfrutar da inteligência e da
vivência com pessoas moralmente superiores?
Em que tudo isso importa? Vamos
começar pela influência dessas palavras de Kardec no movimento espírita. É
ainda recorrente centros espíritas que não aceitam ou aceitam com ressalvas
comunicações de pretos velhos, índios e outros espíritos que se apresentam de
maneira não convencionada como de confiança. Os espíritas fazem esforços para
se aproximar das religiões cristãs, ainda que contra a vontade das igrejas
cristãs, ao mesmo tempo que fazem esforços para se distanciar das religiões de
matriz africana, mesmo elas guardando algumas semelhanças e sendo mais abertas
que as cristãs. É comum os centros espíritas apoiarem as artes que tenham
influências europeias, como grupos harmônicos, balés, corais, mas dificilmente
apoiam grupos rítmicos, danças africanas e cânticos indígenas. O Brasil é
formado por cerca de 54% de negros e pardos, mas apenas 30% dos espíritas se
identificam como negros e pardos (8). É um movimento branco, de classe média,
com renda e escolaridade acima da média do país. Mesmo sendo 30% de negros e
pardos, precisamos perguntar: quantos estão em cargos de diretoria em centros
espíritas? Quantos estão à frente de Federações Espíritas? Quantos são os
palestrantes negros que se destacam, que são estrelas do panteão de
palestrantes espíritas?
Muitos vão exemplificar com as
exceções, que vem somente a corroborar com o fato de que, também no movimento
espírita, há um racismo estrutural.
Além disso tudo, há um fato
histórico que exemplifica esta questão. A Umbanda nasceu a partir do
preconceito de espíritas, quando Zélio de Moraes foi à Federação Espírita de
Niterói porque apresentava problemas de saúde que ninguém sabia curar. Uma vez
na mesa mediúnica da referida federação, espíritos de negros escravos e índios
se apresentaram, mas foram convidados a se retirar pelo dirigente da reunião
por julgar que eram “Espíritos atrasados”. Foi então que se manifestou o
espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas, proferindo um discurso de defesa dos
Espíritos que se apresentaram, bem como das pessoas que eram discriminadas no
Brasil. Comunicou aos presentes na mesa que no dia seguinte seria instalada uma
religião que não teria discriminação e que todos seriam bem-vindos (9).
Os diversos movimentos espíritas
precisam reconhecer que o racismo estrutural está presente em seu seio, e que
tem o dever cívico educar e de lutar contra, além educar a população sobre a
espiritualidade, que espírito não tem cor, nem sexo e que não há sacralização
de Kardec. Reconhece-se a grandiosidade de Kardec, assim como se deve
reconhecer este lapso de caráter nele, que provavelmente pela Lei de Progresso
já deve pensar muito diferente de há 150 anos.
Finalmente, Kardec bem antenado
ao movimento intelectual de sua época e num esforço para ir além do que se
podia, com a descoberta da realidade espiritual e suas consequências, conseguiu
ir um pouco além da ciência de sua época nesse ponto, pois não via qualquer
raça condenada a opressão, mas numa infância do progresso espiritual. Apesar de
tudo, dos pensadores europeus, Kardec provavelmente foi quem teve um olhar
menos preconceituoso acerca dos negros. Nós temos um dever cívico de continuar
a debater o assunto e construir um espiritismo mais antenado à ciência da
atualidade, pois o codificador pensava que “o Espiritismo jamais será superado,
pois, se novas descobertas demonstrarem estar em erro em um determinado ponto,
ele se modificará sobre esse ponto” (10).
Além da perspectiva científica, é
uma questão ética apontar e compreender o racismo em Kardec. Não é aceitável e
devemos debater sobre o que fazer com os textos escritos acerca do assunto.
Como devem ser as notas de rodapé sobre isso? Apenas explicando que era um
pensamento comum à época, ou firmar posição contra essa ideia de Kardec? Eu sou
da opinião que as notas de rodapé não podem somente dizer que era um pensamento
comum à época dele, mas de afirmar que essas ideias não coadunam com o
pensamento espírita atual, que são veementemente repudiadas e que Kardec estava
ERRADO, sem medo de dizer. Então espíritas, estamos prontos para modificar esse
ponto, ou vamos passar pano em Kardec e ter que dar explicações falaciosas de
tempos em tempos?
(1) Não falarei do texto contido em “Obras Póstumas”, pelo simples fato de não
ter sido publicado por Kardec e por ele não diferir muito dos que foram
contemplados neste artigo.
(2) “Revue Spirite”, abril de
1862.
(3) Ibid.
(4) McCloy, Shelby T. Negroes and
Mulattoes in Eighteenth-Century France. The Journal of Negro History, Vol. 30,
No. 3 (jul., 1945), pp. 276-292.
(5) “Revue Spirite”, agosto de
1864.
(6) “Revue Spirite”, fevereiro de
1867.
(7) “A Gênese”. Cap. XI, Raça
Adâmica. pp. 238-239. Edição conforme o texto original de Allan Kardec da 1ª
Edição de 1868.
(8) IBGE. Banco de Tabelas e
Estatísticas. “Censo Demográfico”. Disponível em
<https://sidra.ibge.gov.br/Tabela/2094>. Acesso em 28. jun. 2022.
(9) Rohde, Bruno Faria. Umbanda,
uma Religião que não Nasceu: Breves Considerações sobre uma Tendência Dominante
na Interpretação do Universo Umbandista. “Revista de Estudos da Religião”.
2009, pp. 77-96.
(10) “A Gênese”, Cap I, 55, pp
71. Edição conforme o texto original de Allan Kardec da 1ª Edição de 1868.
* Artigo originariamente
publicado no Blog da Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa
(Assepe).