05 outubro 2025

MUJICA E O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA UMA ANÁLISE ESPÍRITA, NÃO MORALISTA.- Ricardo de Morais Nunes

 

MUJICA E O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA                 

UMA ANÁLISE ESPÍRITA, NÃO MORALISTA.


Ricardo de Morais Nunes, Servidor Público, 
Bel em Direito, Lic. em Filosofia, Presidente da CEPABrasil          

             

Em 13 de maio de 2025 faleceu José Alberto Mujica Cordano, mais conhecido     como Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai. Pensamos que para nós, espíritas, compreendermos um personagem com a história de Pepe Mujica, é necessário amplitude de pensamento, requer sairmos do senso comum, dos jargões simplistas e condenatórios, tão próprios da extrema direita de nosso tempo, a qual normalmente julga pela superfície das coisas, de forma moralista, sem ir à profundidade dos problemas, sem ir ao campo das intenções e, também, das estruturas sociais.

Pepe Mujica foi um político, não foi um religioso ou espiritualista de qualquer denominação. Esse dado é fundamental para que possamos começar a tentar entender seus valores e ações nesse mundo. Mesmo conhecedores da polêmica sobre a filiação ideológica de Mujica que analisa se ele era reformador ou revolucionário, podemos dizer que o que influenciou Mujica, em termos de concepção filosófica de mundo, além de um ideário nacionalista, foi uma visão materialista de cunho marxista.

Na compreensão marxista, esse mundo que vivemos, traz uma violência de classes intrínseca, pois o sistema capitalista é altamente violento e excludente de grandes parcelas da população no sentido do acesso aos bens da vida, seja o trabalho, a educação, a saúde, a alimentação, a moradia, o saneamento básico etc.

Há, no mundo, segundo a vertente filosófica marxista, enormes contingentes de seres humanos, em geral trabalhadores, não detentores dos meios de produção, possuidores apenas da sua força de trabalho, que se encontram desamparados, jogados à sorte, em razão de um sistema econômico que se diz democrático, mas que desampara milhões de pessoas.

O marxismo nos fala de uma violência “estrutural” do sistema econômico capitalista, que vai além da violência meramente individual, essa violência estrutural tem a ver com a forma econômica e política em que a sociedade está organizada.

Podemos ver aspectos dessa violência em vários campos de nossas sociedades capitalistas contemporâneas. É facílimo verificar, por exemplo, que a esmagadora maioria de presos do sistema prisional brasileiro, por exemplo, são jovens das comunidades carentes do Brasil, em grande parte negros, que são facilmente aliciados pelo tráfico de drogas, ante a falta de oportunidades para as suas vidas nas comunidades desamparadas em que vivem, nas quais, via de regra, o Estado não está presente.

Esses jovens poderiam estar aspirando à universidade para serem médicos, engenheiros, advogados, poderiam sonhar em ser músicos, dançarinos, atores e atrizes, poderiam desenvolver suas vocações como mecânicos, eletricistas, padeiros, encanadores, entre tantas possibilidades profissionais, no entanto, desde a juventude, às vezes, desde a adolescência, possuem seu destino marcado por uma ficha criminal e por passagens por estabelecimentos penitenciários ou educacionais para menores infratores. Trata-se de um desperdício brutal de seres humanos jovens, com potencialidades para servir à sociedade.

Se não levarmos em consideração esses dados da realidade, seremos levados a pensar que o problema desses jovens é exclusivamente moral, o que seria um erro, pois o problema desses jovens passa pela análise econômica-política-social.

O marxismo, dentro desse contexto, aceita a violência revolucionária para que se possa livrar o mundo dessas mazelas, no sentido de fazer um mundo melhor que livre o ser humano da violência estrutural das sociedades capitalistas e que vá na direção da emancipação humana. Podemos concordar ou discordar dessa teoria, mas não podemos perder de vista que se trata de uma teoria filosófica, que até mesmo se pretende científica no campo das ciências sociais, sendo que, gostemos ou não, procura dar conta da realidade. Essa visão de mundo influenciou profundamente o jovem Mujica.

  Do ponto de vista político e histórico é necessário levar em conta, igualmente, que na década de 60 do século passado, havia uma euforia na América Latina com as ações armadas. O exemplo cubano causou imensa esperança em toda a América Latina à época, inclusive, no povo cubano, que apoiou aquela revolução, que foi realizada contra um ditador apoiado pelos norte-americanos, de nome Batista.

É nesse contexto que devemos falar das ações revolucionárias de Mujica. De fato, Mujica participou de um grupo guerrilheiro que lutou, com armas na mão, contra aqueles que entendia, à época, como mantenedores da violência estrutural na sociedade uruguaia.

Há quem critique Mujica por ter participado de um grupo guerrilheiro em época democrática. Pode ser que a avaliação de Mujica e seus companheiros revolucionários tenha sido equivocada nesse sentido. A própria esquerda debate sobre o tema do momento certo para ações de tipo armado, há correntes de pensamento na esquerda que entendem que a luta armada só se justificaria frente a ditaduras.

Sobre esse tema podemos ver a opinião de Mujica, na reportagem do portal uol de 13.05.2025: “Parte da população uruguaia culpa os tupamaros pela espiral de violência que levou ao golpe militar de 1973. Para Mujica, no entanto, seu país vivia uma “democracia doente” e a ditadura era inevitável, assim como ocorreu em outros países da região”.

De fato, em 1973, o Uruguai se torna uma ditadura, conforme o espírito do tempo de golpes militares na América Latina. O grupo revolucionário de Mujica se manteve ativo, por alguns anos, após o advento da ditadura uruguaia lutando contra essa ditadura e pagando o preço por isso. Mujica, por suas ações, foi preso.

Existe um filme muito interessante de nome “Uma noite de 12 anos” que retrata as condições degradantes da prisão de Mujica.  Segundo o historiador Dércio Fernando   Moraes Ferrari, em reportagem para o portal uol, em 13.05.25:

Mujica foi preso em absoluto vazio jurídico, já que não foi julgado e nem acusado, sua prisão extrajudicial poderia ser considerada, para todos os efeitos, um sequestro militar”.

Por fim, Mujica sai da prisão em 1985.Nessa ocasião renúncia aos seus ideais de luta armada e se empenha no processo de redemocratização do Uruguai. Após ter passado pelos cargos de deputado, senador e ministro de Estado chegou à presidência do Uruguai em 2009.

Exerceu a presidência da República com espírito humanista e democrático. Jamais se pôs a querer vingar-se das humilhações sofridas no cárcere e jamais cortejou qualquer possibilidade de implantar uma ditadura de esquerda no Uruguai. Pouco antes de morrer ajudou a eleger um correligionário seu à presidência da República.

Como espírita, não sou favorável a métodos violentos de transformação social, pois acredito que a violência traz traumas profundos, difíceis de curar, nos indivíduos e nas sociedades, mas compreendo o contexto político, histórico e filosófico do qual partiu Mujica para suas ações. Também não confundo a violência do opressor com a violência do oprimido.

 É necessário, nesse ponto, considerarmos, com realismo, o processo histórico, o qual nos demonstra, que, muitas vezes, processos de transformação social ocorrem através de lutas sociais violentas. Para ficar apenas em alguns exemplos, a Revolução Francesa contra a aristocracia monárquica, as guerras de independência nacional de muitos povos, inclusive da América latina, e a guerra civil norte americana com vistas a abolição da escravatura, entre outros movimentos, demonstram a triste realidade da violência na história que ainda não foi superada pelos povos, mas que, apesar de tudo, serviram a movimentos libertadores de povos e grupos sociais oprimidos.

 Na verdade, a violência revolucionária não nasce do vácuo, do vazio, nasce de outras violências institucionalizadas geralmente não categorizadas como violência. Nesse sentido, Ghandi e Martin Luther King tentaram abrir novos e excelentes caminhos de emancipação política não violenta, mas, paradoxalmente, foram mortos violentamente, apesar de seu pacifismo. Trata-se de tema extremamente complexo e que foge muitas vezes ao nosso desejo pessoal, legítimo e ético, e espírita, de paz entre as pessoas e os povos.

A violência, no caso de Mujica, visava a um fim maior, conforme as crenças e convicções filosóficas e políticas do seu grupo, tinha por objetivo a emancipação de seu povo rumo a um estágio superior de qualidade de vida e democracia para todos os uruguaios. Mesmo que não concordemos com ações violentas não podemos esquecer desse dado fundamental de análise. Não se trata de justificar, mas de compreender as lições da história.

O espiritismo, por sua vez, possui toda uma reflexão ética esclarecedora sobre o problema das intenções, das motivações interiores e responsabilidades. Nesse sentido, Mujica arriscou sua vida por ideais coletivos e não por motivos   de caráter pessoal, egoísticos.

   Uma das características mais nobres de Mujica era seu desprendimento em relação aos bens materiais. Mujica, seu fusca e seu sítio, ficarão gravados para sempre na memória de todos aqueles que entendem que a política deve ser feita sem apego aos bens materiais e às benesses do poder.

O exemplo de Mujica se parece, em certa medida, com a história de Nelson Mandela. Mandela, em sua juventude, optou pela luta armada, porém após sair da longa prisão que lhe foi imposta pelo regime segregacionista da África do Sul chegou à presidência da República com espírito de tolerância e inclusão de todos os sul Africanos, brancos e negros, em uma mesma sociedade.

Encerramos o presente artigo com uma reflexão de Mujica sobre o ódio, o amor, e os defeitos humanos, colhida no portal uol de 13.05.25: “Tenho meu quinhão de defeitos. Sou apaixonado. Mas há décadas não cultivo o ódio em meu jardim. Aprendi uma dura lição que a vida me ensinou: o ódio acaba estupidificando por que nos faz perder a objetividade frente às coisas. O ódio é cego, como o amor, mas o amor é criativo, e o ódio destrói-nos”.