O DIVINO FELICIANO
E OS HUMANOS DIREITOS
Milton R. Medran Moreira
Advogado e jornalista, Presidente do Centro Cultural Espírita
de Porto Alegre.
Dentre os grandes equívocos
das religiões, talvez o mais danoso ao ser humano é o de tomar como valores
eternos e imutáveis preceitos apenas compatíveis com o tempo em que
promulgados. A Bíblia judaico-cristã, por exemplo, está repleta de conteúdos
claramente preconceituosos que colidem frontalmente com modernos valores como
liberdade e igualdade.
Religiões são a expressão de provisórias necessidades de
sobrevivência e de preservação de valores, hábitos e crenças de coletividades
humanas postos em confronto com as de outros grupos. Elas são necessariamente
sectárias porque visam a proteger aquele agrupamento, aquele gênero, aquela
ideologia, aquele sistema de poder, contra interesses que as possam
desestabilizar. Religião e poder sempre tiveram íntima conexão, porque as
regras de conduta dela emanadas, se destituídas de cogência, perderiam
efetividade. Ou seja: não há forma de dar efetiva exequibilidade aos valores e
preceitos religiosos que não atribuindo sua origem à autoridade máxima capaz de
ser concebida pela mente humana: Deus. Quando transformados em dogmas de fé,
quando a promulgação deste ou daquele preceito logra se impor como de efetiva
origem divina, ele estará revestido de tudo aquilo que uma norma exige para ser
efetiva: seu poder de cogência.
A história da civilização não é nada mais nada menos que o
resultado do conflito entre esse pretenso poder divino de ditar normas tidas
como eternas e imutáveis e a saga humana de tomar para si o múnus de legislar
conforme as especificidades e necessidades de cada tempo. Nessa guerra entre
deuses e homens, estes últimos têm se valido de algumas armas que só estágios
mais recentes de seu processo evolutivo lhes disponibilizaram. São coisas tais
como razão se sobrepondo à fé, direitos humanos com prevalência sobre
prerrogativas do mais forte, direitos de minorias ganhando efetividade legal
contra privilégios de aristocracias raciais, econômicas e religiosas que não os
reconheciam e, mais que isso, os condenavam por manifestamente contrários à
presumível ordem divina.
O resultado desse conflito deu origem ao que chamamos
Estado Democrático de Direito. Sua implementação e sedimentação na moderna
sociedade se dão apesar da religião e, muitas vezes, contra esta. Diga-se,
entretanto, de passagem: contra a religião não significa contra a
espiritualidade. Quem, sendo capaz de fugir do dualismo sagrado/profano,
cultivar o entendimento de que a verdadeira essência do ser humano reside na
sua condição de espírito há de reconhecer, sempre, nas tendências históricas do
gênero humano, e, logo, do espírito humano, a própria realização de sua
identidade plena com o divino.
Mesmo que reputemos como insuperável o conflito entre religião
e Estado Democrático de Direito, aquela tem insistido em se valer deste para
obstaculizar sua caminhada, para anular, pelos próprios mecanismos por ele
disponibilizados, o seu avanço. O episódio da recente eleição de um certo
Pastor Deputado Marco Feliciano para presidir, na Câmara dos Deputados, a
Comissão de Direitos Humanos, comprova isso.
Apesar de exibir uma
biografia de insuspeita submissão a um tipo de fé que confronta com os direitos
humanos e prega atitudes de franco boicote à vigência de alguns deles,
Feliciano foi guindado pela maioria de seus pares à presidência do órgão.
Que dizer da exitosa
pretensão do pastor deputado? Legítima, na medida em que, pela lógica interna
de seu meio, ele e seus eleitores se julgam partícipes de uma certa ordem
divina, por natureza incompatível com a ordem humana.
Que dizer, no entanto, de um
sistema formalmente comprometido com o Estado de Direito quando, ele próprio,
unge justamente alguém com esse perfil para presidir uma comissão parlamentar e
permanente de Direitos Humanos? Mais do que incoerente, a atitude é autofágica.
No mínimo, nega e nulifica os próprios fundamentos de sua existência.
Tristemente, revela que se, formal e institucionalmente, se pode falar em um
Estado Democrático de Direito, na prática ele não passa de um tênue projeto
humano que esbarra ainda nos caprichos e nos poderes dos deuses.
Artigo publicado no Jornal ZERO HORA de Porto Alegre em 12/03/2013