Marcio Sales Saraiva - Escrevinhador, sociólogo e coordenador do Centro Espírita Herculano Pires (RJ). É doutor em Psicossociologia (Eicos/UFRJ).
Os seres humanos abandonaram seu “estado de natureza”, com suas organizações sociais primevas, para construir sociedades enormes e complexas, chamadas de “civilizações”.
Para o espiritismo (KARDEC, 2006, questão 776), não podemos confundir esse “estado de natureza” com a chamada lei natural, pois esta é, na verdade, lei de Deus, regendo o funcionamento cósmico. Em “O livro dos espíritos” encontramos dez aspectos dessa lei natural de regulação da vida, e um deles é a chamada lei de progresso.
O progresso humano faz parte dessa lei natural ou lei de Deus. Isso quer dizer que o ser humano não regride — nem espiritualmente, nem socialmente — ao seu estado de natureza ou “primitivo”. Em outras palavras, o progresso evolutivo espiralar é uma força endógena e espontânea (KARDEC, 2006, questões 778–779) que conduz a humanidade planetária. E, embora alguns seres humanos reacionários tentem impedir esse progresso, causando-lhe embaraços e retenções, ele ainda assim se afirmará gradualmente (KARDEC, 2006, questão 781), porque essa é a lei divina, essa é a vontade da vida que pulsa no mundo. De fato, não haverá paz global “sem trazer de volta do exílio ideias como a do bem-público, da boa sociedade, da igualdade, da justiça e assim por diante — ideias que não fazem sentido senão cuidadas e cultivadas na companhia de outros” (BAUMAN, 2000, p. 16). O progresso, hoje, envolve tais questões democráticas.
A civilização que temos — seja no capitalismo ou nos diversos modelos do antigo socialismo real — representa ainda um “progresso incompleto” (KARDEC, 2006, questão 790), pois falta maturidade aos seres humanos. Nós ainda não estamos “preparados” nem “dispostos” (KARDEC, 2006, questão 792) a viver numa sociedade igualitária, caridosa, ambientalmente sustentável e de bem-comum. Por outro lado, muitos acusam, ansiosamente, a lentidão desse progresso “natural” (os espíritos chamam-no de “regular e lento” – ver questão 783), mas eles sinalizam que esse processo poderá sofrer intervenções da lei de Deus para que ocorra uma “aceleração” revolucionária. Em outras palavras, certos abalos físicos ou morais poderão fazer a humanidade avançar mais celeremente rumo ao progresso social, econômico, cultural, político e espiritual. Por vezes, é preciso que o mal “chegue ao excesso” (KARDEC, 2006, questão 784) para que a sociedade perceba, com clareza, a necessidade “do bem e das reformas”, que poderão ser pacíficas ou não (vide lei de destruição).
De acordo com a concepção kardequiana, nossa civilização chegará ao ápice, à plenitude, quando estiver desenvolvida moralmente, vivendo cotidianamente a partir de uma ética das virtudes. Neste momento histórico em que ainda estamos mergulhados, aqueles que se julgam “civilizados” são, na verdade, apenas pessoas “esclarecidas” cognitivamente, mas carentes do componente ético-moral, embotadas no campo das virtudes e distantes do senso de irmandade e de comunhão necessários para um progresso pleno e autêntico da sociedade e de suas instituições (KARDEC, 2006, questão 793).
É importante frisar que Kardec, bom descendente da modernidade racionalista e do Iluminismo, compreende que o chamado progresso ético-moral será consequência do progresso intelectual/cognitivo. A razão — e não a irracionalidade das paixões destrambelhadas! — é o abre-alas para o avanço no campo das virtudes. Essa posição de Kardec não o torna ingênuo, pois ele tem clareza de que nem sempre o progresso intelectual e tecnocientífico traz o progresso ético-moral (KARDEC, 2006, questão 785). O século XX foi testemunha disso, e o XXI está nos mostrando, mais uma vez.
Os dois fenômenos (ou os dois progressos, cognitivo e ético) estão relacionados, é claro!, mas não de forma automática e mecânica. Podemos ter grande avanço educacional, científico e tecnológico, ainda ausente de uma sólida base ético-moral, pois a inteligência é uma força amoral, podendo servir ao bem ou à destruição.
Somente o tempo traz equilíbrio entre razão e ética, cognição e afetos, desenvolvimento intelectual-tecnocientífico e desenvolvimento ético-moral (KARDEC, 2006, questão 785). A ampliação da prática das virtudes é processual, assim como é processual a destruição de todas as manifestações de orgulho e egoísmo — que tomam forma em instituições socioeconômicas e políticas injustas — que impedem o surgimento de uma nova sociedade baseada no amor-caridade, no bem-viver e nos interesses da comunidade.
Contrariando o senso comum do conservadorismo que deseja eternizar leis e normas sociais, aprendemos com o espiritismo que as leis humanas — e seus aparatos jurídico-políticos — são variáveis e progressivas (KARDEC, 2006, questão 795), mudando ao longo do tempo. Somente a lei natural e divina é imutável, estável e perene, pois as demais leis sofrem processos contínuos de aperfeiçoamento — e assim deve ser. Esse aperfeiçoamento jurídico-político acontece, na visão kardequiana, pela “força das coisas” ou pela “influência das pessoas de bem” (KARDEC, 2006, questão 797), isto é, por razões endógenas e por ativismo social.
Significa dizer que a humanidade vai progredindo juridicamente e politicamente, aos trancos e barrancos, mas vai. O espiritismo é, nesse sentido, otimista e fonte de esperança. Exemplos não nos faltam: o direito trabalhista e previdenciário, a ampliação do sufrágio, a redução das penas de morte, a afirmação dos direitos humanos, o reconhecimento dos direitos LGBTQIA+, a ampliação da proteção a refugiados, o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas em Estados plurinacionais, as leis antirracistas etc.
Todos esses avanços civilizatórios dependem também de fortes investimentos públicos em educação. É na formação dos seres humanos que reside a fonte fundamental do processo de reformas (libertação e emancipação) que nos impulsiona ao verdadeiro progresso societário e espiritual (KARDEC, 2006, questão 796).
Para o espiritismo, a razão joga papel central, pois, sem progresso intelectual — educacional, científico, tecnológico e cultural —, o ser humano não saberia fazer escolhas, discernir o bem do mal e, portanto, não poderia ser responsabilizado por seus atos devido à sua ignorância. Assim, o espiritismo deve ser um aliado visceral das lutas pela educação, a exemplo de Darcy Ribeiro e Paulo Freire em nosso país.
Por que a educação é fundamental para o progresso?
A educação é fundamental porque o progresso da humanidade tem por base o progresso de seus indivíduos (KARDEC, 2006, questão 789). Observe bem: não se trata de dizer que o progresso, lei natural da vida, dependa exclusivamente dos indivíduos — pois, para Allan Kardec, o progresso segue seu curso estrutural, ainda que muitos indivíduos fiquem para trás. Por outro lado, ele ganhará maior força e velocidade quando, ao longo de várias encarnações, os indivíduos se tornarem pessoas melhores, mais caridosas e compassivas, mais preocupadas com o bem-comum e o bem-viver.
Essa visão kardequiana é coerente com a tese do sociólogo Norbert Elias sobre a sociedade dos indivíduos: para ele, não há uma oposição entre indivíduo e sociedade, mas uma interdependência contínua e dinâmica. Os processos de civilização ocorrem justamente na medida em que os indivíduos se transformam em suas maneiras de sentir, pensar e agir — e essa transformação repercute diretamente nas estruturas sociais. Por isso, quanto mais avançados são os indivíduos (do ponto de vista das virtudes), mais justa e fraterna será a sociedade que formam.
Quando esses indivíduos se tornarem maioria na sociedade, ela sofrerá profundas mudanças socioeconômicas, políticas e culturais, acelerando seu ritmo de progresso. Kardequianamente falando, a mudança social está profundamente conectada à transformação individual — pois, como dizem hindus e budistas, o mundo é uma teia.
E qual é a missão do espiritismo nesse contexto?
O espiritismo tem por missão contribuir com o progresso da civilização humana e do bem-viver, contrapondo-se à barbárie e à degradação ambiental, ética e psíquica. Nesse sentido, “nada é mais importante do que recuperar a paixão das ideias” (BADIOU, 2012, p. 59), tal como a da lei de progresso em Kardec.
É destruindo o materialismo grosseiro — e suas consequências (egoísmo, consumismo, avareza, culto ao dinheiro, negação da vida espiritual e do ócio criativo) — e ampliando os laços de irmandade e solidariedade (KARDEC, 2006, questão 799) que o espiritismo poderá ser mais uma alavanca progressista no mundo, ajudando a anular os “sintomas de uma corrosiva desesperança existencial” (BAUMAN, 2000, p. 25) que tende a implodir os laços sociais.
Não cabe aqui ansiedade, precipitação ou tentativa voluntarista de acelerar o tempo histórico. Sabemos que “o mundo contemporâneo é um recipiente cheio até a borda de medo e frustração” (BAUMAN, 2000, p. 62) e que nossa sociedade líquida está permeada por solidão, impotência, conformismo e incerteza (BAUMAN, 2000, pp. 11–13). Por outro lado, se quisermos resgatar a força do pensamento kardequiano, cabe a nós — espíritas — trabalhar, com esperança, resiliência e boa-vontade, pela hegemonia das forças progressistas, conscientes de que essa transformação “só poderá operar-se com o tempo, gradualmente” (KARDEC, 2006, questão 800). A natureza não dá saltos e “cada coisa tem o seu tempo” (KARDEC, 2006, questão 801) para frutificar.
Enquanto isso, a luta segue, pois as forças irracionais, conservadoras e reacionárias da globalização hegemônica — defensoras da primazia do mercado, da liberalização do comércio, da privatização, da desregulamentação financeira, da precarização do trabalho e da destruição das redes de proteção social e ambiental — buscam colocar entraves ao processo de emancipação humana. Sabemos que “o inimigo mais temível da política de emancipação” é a “interioridade do niilismo e a crueldade sem limites que pode acompanhar seu vazio” (BADIOU, 2012, p. 22).
Por isso, precisamos esperançar, como disse Paulo Freire, e nos unir ao processo de globalização contra-hegemônica, constituído “a partir de baixo” (SANTOS, 2013, p. 30), articulando questões pessoais, locais e globais contra a opressão, o colonialismo, a desigualdade (social, racial e sexual), a destruição dos empobrecidos, a catástrofe ecológica, a expulsão de camponeses e indígenas de seus territórios ancestrais, o endividamento de famílias e pequenos empresários, e a criminalização do protesto social.
O espiritismo poderá contribuir muito, nesse sentido progressista, se retomar suas bases kardequianas e fazer uma hermenêutica para o século XXI, afastando-se de alianças com teologias políticas conservadoras. É na articulação entre a salvífica caridade, o cuidado dos outros e a “luta política contra as causas do sofrimento” (SANTOS, 2013, p. 121) que o espiritismo poderá ser um espaço relevante para o progresso humano.
Bibliografia
BADIOU, A. (2012). A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo.
BAUMAN, Z. (2000). Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar.
KARDEC, A. (2006). O livro dos espíritos (Tradução de Evandro Noleto
Bezerra). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
SANTOS, B. de S. (2013). Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos.
São Paulo: Cortez.