Dora Incontri:- Jornalista, escritora, doutora e pós-doutorada em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e da Universidade Livre Pampédia. Sócia da Editora Comenius.
Um dos primeiros posts que lançamos nesse blog da ABPE, escrito por Cláudia Mota, foi sobre nossa experiência no grupo de Mediunidade Pedagógica, em ação há vários anos. A reação favorável e os comentários do público demonstram o quanto estamos carentes de boas, consistentes e aprofundadas discussões sobre a prática mediúnica no movimento espírita. E mais, como rareiam reuniões e médiuns com trabalhos mais criteriosos, controlados e atitudes críticas e racionais em relação a essa prática.
Na atual configuração do
movimento no Brasil, temos duas situações recorrentes: um espiritismo quase sem
espíritos, com centros, grupos e pessoas inseguros para realizar um bom
trabalho de desobsessão ou de psicografia, por exemplo; e um espiritismo que
gira em torno de médiuns-gurus, que estão acima de qualquer análise crítica,
que são incensados por fãs e que se tornam líderes incontestáveis em seu meio,
em setores do movimento ou mesmo no movimento quase inteiro!
Três coisas muito importantes que
Kardec propôs e praticou e andam esquecidas: 1) a mediunidade é algo natural,
que pode ser praticada em grupos pequenos, com estudo, seriedade e princípios
éticos; 2) os médiuns, por melhores que sejam, estão sujeitos a falhas e por
isso devem submeter constantemente o que captam do além à crítica alheia e ao
cruzamento com percepções de outros médiuns; 3) os médiuns não devem procurar
(e nem mesmo aceitar) projeção, liderança e popularidade por serem médiuns
(Kardec nem nomeava os médiuns em seus livros). Que busquem projeção (se assim
desejarem) ou ganhem liderança, por suas próprias capacidades e não por serem
intermediários dos Espíritos.
Traduzindo esses três itens em
outras palavras: mediunidade é algo para ser desenvolvido tranquilamente, sem
muitas complicações, algo a ser democratizado e não sacralizado; os médiuns
precisam trabalhar seus impulsos narcísicos e praticarem mediunidade com
modéstia.
Isso não significa que não se devam
publicar coisas mediúnicas, fazer sessões públicas ou divulgar obras feitas
pelos Espíritos. Mas significa que tudo isso deve passar pela análise crítica,
tudo deve ser feito com desinteresse de projeção pessoal.
Ora, aí que entra uma questão
muito importante: para se exercer uma mediunidade honesta e consciente, sem
muita mistura de vaidade pessoal, é preciso que o indivíduo tenha o compromisso
do autoconhecimento. Esse mesmo que Sócrates já aconselhava tantos séculos
atrás, que se repete como uma recomendação no Livro dos Espíritos e hoje é muito facilitado pela possibilidade de
fazermos terapias, nas mais diversas abordagens existentes.
Conhecendo-nos melhor (o que
aliás é tarefa que não acaba numa existência), podemos em primeiro lugar saber das
nossas motivações internas mais profundas, vencer a imaturidade psíquica de
querermos ser adorados e mimados a qualquer preço, entender melhor como
funciona nosso psiquismo, precavendo-nos contras as armadilhas do egocentrismo,
do desejo de poder e outras tantas coisinhas que nos atrapalham
existencialmente. Dentro de uma abordagem psicológica, passamos a enxergar tudo
isso não mais como vícios, contra os
quais temos de promover uma reforma
íntima, com culpa e autoflagelação (o que resulta na maior parte das vezes
em mera hipocrisia), mas começamos a compreender tudo isso como imaturidade
espiritual. Deixar de lado exibicionismos, personalismos, melindres e vaidades
é simplesmente ter atingido um grau de maturidade em que não se acha mais graça
nessas pequenezas. A pessoa mais madura acha sim graça em fazer o bem sem
ostentação, em buscar contribuições que a façam crescer e não as ilusões do
incenso que a façam estacionar…
É claro que tudo isso é o ideal a
ser perseguido. Sabemos que estamos todos em aprendizagem, em processo de
maturação espiritual. Todos nós vamos misturar imperfeições nossas em qualquer
ação, por isso que Kardec dizia que o melhor médium é o que menos erra. Mas não
custa tentar um pouco de bom senso e seguir algumas recomendações dele. E
seguir também o seu próprio exemplo.
Em todo o século XIX, com grandes
gênios de egos inchados – como Compte, Marx, Freud – Kardec é notável por ter
se escondido atrás da própria obra. Ele não encenava humildade, falando de si
mesmo de forma depreciativa, ele simplesmente não falava de si. Buscava
elaborar um conhecimento racional, equilibrado e reto. E foi tão modesto que
seus adeptos chegaram a achar até hoje que ele foi mero codificador (título
aliás que não aparece em nenhuma obra sua), um simples um secretário de ideias
reveladas pelos Espíritos. Mas na verdade, Kardec foi o fundador do
Espiritismo, que é justamente um método de abordagem dos fenômenos mediúnicos.
Como se dá esse processo entre os dois mundos e como podemos analisar e
aproveitar para nossa edificação moral, o que vem de conteúdo nesse diálogo
entre encarnados e desencarnados? Aí reside a essência do Espiritismo. E
exatamente esse seu método de naturalização da mediunidade, com uma abordagem
crítica e racional, que não entendemos e não praticamos no movimento espírita.
É preciso pois, para que possamos restabelecer comunicações seguras, confiáveis e democratizadas com o mundo espiritual, que diminuamos nosso ego, recuperemos o espírito crítico, estudemos Kardec e busquemos a ética de servir desinteressadamente.