Salomão Jacob
Benchaya(*)
No espiritismo, que é um movimento evidentemente diversificado, segmentado, também encontramos espíritas ortodoxos, apegados excessivamente aos textos fundadores e avessos a uma reflexão contemporânea sobre as ideias basilares de Allan Kardec. Afirmam que “fora de Kardec, não há espiritismo” ou que “o Espiritismo é um só”. Percebem como verdade apenas o que se encontra na literatura kardeciana toda ela ditada e supervisionada pelos “espíritos superiores”. Sendo a “3ª revelação divina”, como equivocadamente Kardec o situou, tornar-se-ia uma doutrina infalível, portanto, definitiva e indiscutível, terreno já dominado ao qual, um dia, a Ciência poderá alcançar.
Tal
postura assemelha-se ao fundamentalismo religioso, geralmente baseado em um livro
sagrado que é interpretado literalmente. É nesse campo que se encontram,
também, os defensores da “pureza doutrinária” que nada mais é do que o modelo
de espiritismo pretendido pelos detentores do poder e do discurso dominante,
não necessariamente o proposto pelo fundador do espiritismo.
Elias Inácio de Moraes, em seu livro “Contextualizando Kardec: do século XIX ao XXI”, contrapõe-se a essa visão ao trazer para a contemporaneidade informações e conceitos apresentados por Kardec, perfeitamente ajustados ao seu tempo, mas impróprios para os dias atuais.
Quando a CEPA organizou, em 2000, o seu XVIII Congresso Espírita Pan-americano, na cidade de Porto Alegre e propôs a discussão do tema “Deve o Espiritismo atualizar-se?” – vejam que a CEPA nem afirmou tal necessidade, nem se propôs a assumir tal empreitada; apenas convidou os espíritas à reflexão sobre o tema -, houve uma intensa reação do movimento organizado, com recusa das federativas estadual e nacional a participarem, sob a alegação de que somente os espíritos superiores poderiam tomar tal iniciativa.
Aliás, eu nem poderia classificar a maioria das federações espíritas como ortodoxas, tendo em vista sua declarada ou disfarçada adesão aos preceitos roustainguistas.
É possível, grosso modo, traçar-se um perfil do espírita ortodoxo, ao qual se ajustam, também, espíritas conservadores:
- Considera-se um defensor da pureza doutrinária;
- Acredita que o espiritismo tem respostas para tudo;
- Apega-se literalmente aos textos de Kardec;
- Possui convicções inabaláveis;
- Diante das certezas que possui, torna-se, por vezes, extremamente intolerante;
- Tende a menosprezar, combater e até a silenciar o diferente;
- Opõe-se à análise crítica dos textos fundadores do espiritismo;
- Recusa o diálogo e/ou a conciliação com o opositor;
- Atribui ao Espiritismo a tarefa de salvar a humanidade;
- Condena os que defendem a atualização do Espiritismo.
Será
que essa postura supremacista teria o aval do fundador do espiritismo?
Como
conciliar tal posicionamento em face da ética proposta por Jesus de Nazaré?
Há
perspectivas de uma renovação de mentalidades entre os espíritas?
“Pretender, porém que o Espiritismo venha a
ser organizado, por toda a parte, da mesma maneira; que os espíritas do mundo
inteiro sejam sujeitos a um regime uniforme, a uma única norma de procedimento;
que devem esperar a luz de um único ponto, para onde tenham voltado os olhos,
seria utopia tão absurda, como pretender que todos os povos da terra não formem
um dia senão uma única nação, governada por um único chefe, regida por um mesmo
código de lei e tendo usos e costumes idênticos.”
Allan
Kardec
Cada vez mais, cresce a percepção de que o
mundo caminha para a diversidade, para o pluralismo. São as diferenças que
propiciam a interação, o conflito e a dialética busca do crescimento. O
propósito alimentado pelos órgãos federativos de “unificar” os espíritas se
torna ultrapassado e colonialista por querer impor o “seu” pensamento, o seu
modelo exclusivo, cerceando os adeptos de exercerem seu mais elementar direito
– o de pensar livremente e de agir segundo sua própria consciência. Os que
pensam diferente são marginalizados, excomungados da comunidade federada.
Há
pouco mais de 20 anos, começava-se a falar em Alteridade no movimento espírita.
Luiz Signates, estudioso de Emmanuel Levinas e Jürgen Habermas, foi quem
difundiu o termo e o conceito em nosso movimento impactando a comunicação e o
comportamento dos espíritas. Dizia ele em um de seus textos:
“A fraternidade e o diálogo implicam: não ser
indiferente ao outro, mas não apenas isso. Também aceitar pacificamente a
presença da diferença do outro, mas não só. Deve a diferença do outro ser vista
como possibilidade de aprendizado para o eu, mas não basta. É preciso amá-lo,
na diferença dele, e não simplesmente ‘tolerá-lo’.”
Luiz
Signates
O segmento não religioso assimilou prontamente
a proposta da alteridade, hoje compartilhada por inúmeros coletivos que
oxigenam o MEB com suas reflexões e teses. Aliás, postura análoga já era
defendida pela CEPA que, sem ser religiosa, esteve sempre aberta ao diálogo e à
convivência harmoniosa com os vários “espiritismos”. A CEPA e os espíritas a ela vinculados já
foram taxados de “não espíritas” e “obsedados”. Isso vem mudando, felizmente.
Oxalá, possa a experiência do convívio com os diferentes propiciar a união nos moldes preconizados pelo fundador do espiritismo. Que se abandone, assim, o propósito “unificacionista”, portador de uma pretensa vontade divina, missionário, intolerante, castrador, do pensamento único, da fraternidade apenas com os seus iguais, da ausência de reflexão crítica.
Há,
pois, esperança quanto a uma lenta renovação no movimento espírita quando todos
os espiritismos caminharão juntos!
(*) Economista, 78, Diretor de
Eventos Culturais e Intercâmbio do CCEPA, Assessor de Relações com o Movimento
Espírita da CEPABrasil, Diretor Administrativo da CEPA, ex-presidente da FERGS.
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