UMA OPORTUNIDADE PARA REPENSAR O PAPEL DO ESPIRITISMO
(publicado no Jornal Abertura de janeiro/fevereiro de 2019)
Ademar Arthur Chioro dos Reis
Em 2006, o CPDoc promoveu um
profícuo debate com o professor titular de Antropologia da Unicamp José Luiz
Santos, autor do livro “Espiritismo: uma religião brasileira”, cujas principais
ideias registrei aqui na Coluna do CPDoc. Para ele, o espiritismo
conseguiu ocupar um importante espaço na cultura brasileira quando se
consolidou enquanto uma religião cristã, assentada na caridade e em uma
estrutura religiosa sui generis: uma religião de leigos, estruturada em grupos
familiares autônomos e sem a hierarquia tradicional. Atribuiu a inserção
cultural do espiritismo na sociedade brasileira, inicialmente, à psicografia e
à mediunidade receitista homeopática, efetuada inclusive por médicos espíritas
alopatas, como o próprio Bezerra de Menezes.
É inegável, entretanto, que a
respeitabilidade social conquistada se deve sobremaneira ao papel relevante de
médiuns como Batuíra e principalmente Chico Xavier, por meio do qual a
psicografia ficou mais conhecida a partir da década de 30. Médiuns que,
seguindo as orientações de Allan Kardec, fundador do espiritismo, praticaram a
mediunidade de forma desinteressada, gratuita e de boa fé. Os benefícios
advindos dos direitos autorais das obras mediúnicas ou das doações materiais
voluntárias eram sempre utilizados com transparência na manutenção de obras
assistenciais mantidas por instituições filantrópicas espíritas e reconhecidas
pela sociedade e pelo poder público.
Essa postura foi fundamental,
primeiro como estratégia de enfrentamento da repressão contra os espíritas na
Primeira República e no Estado Novo e, após, como meio de legitimação social
que perdura até os dias atuais, consolidando o espiritismo como um respeitável
movimento social de classe média.
Ainda que um pequeno número de
pessoas se declare espírita nos Censos, a sua influência na cultura brasileira
é imensa. Um exemplo claro disso pode ser observado na difusão de conceitos
filosóficos, como a reencarnação, a mediunidade ou a visão que se estabeleceu
sobre a vida após a morte, fortemente representada imageticamente pelas
colônias espirituais como “Nosso Lar”.
Outra face de contato e produção
da imagem societária do espiritismo relevante é a procura por médiuns curadores
em praticamente todo o país, que mobilizam enfermos e desenganados brasileiros,
suscetíveis às mazelas do nosso sistema de saúde (público e privado), mas também
de doentes oriundos de diversos cantos do planeta,
Escândalos sexuais recentes
envolvendo médiuns famosos, como João de Deus, que sequer se considera
espírita, para além da dimensão ética e criminal que merece nosso repúdio – e o
posicionamento da CEPA condenando toda e qualquer forma de violência e o uso
abusivo e antiético da mediunidade foi muito corajoso e oportuno – devem ser
analisados pela fratura histórica que podem impor na imagem do espiritismo no
país e em âmbito internacional.
No momento em que políticos
vinculados a setores conservadores, em particular os pentecostais, assumem
importantes cargos na República e sem cerimônia e com vasto apoio na mídia
controlada por pastores, alardeiam que é chegada a hora de colocar em prática o
“projeto da Igreja”, e considerando que sempre tiveram no espiritismo um
inimigo declarado, é preciso analisar cuidadosamente o impacto que poderão
acarretar ao espiritismo a inaceitável usurpação da mediunidade de cura para
fins econômicos (enriquecimento de médiuns e suas famílias) e para a deplorável
exploração sexual.
É também o momento de repensar o
papel da mediunidade de cura. A falta de compreensão sobre a natureza da
mediunidade, uma capacidade natural e não um ‘dom moral’, fez com que legiões
de seguidores cegamente passassem a legitimar toda a ordem de absurdos,
inclusive acobertando situações insustentáveis de violência sexual,
demonstrando que perderam totalmente o senso crítico e o juízo moral.
Há os que se perguntam como podem
os espíritos permitir que um médium seja um assediador. Imaginam que a moral do
médium está relacionada diretamente à capacidade fenomênica, mas isso é um
grande equívoco. Se assim fosse, médiuns equilibrados e moralmente
desenvolvidos não poderiam servir para comunicações de espíritos obsessores e
perturbados.
Vale questionar, também, como é
possível que médiuns curadores desempenhem suas atividades, as vezes por
décadas, sem que se faça qualquer tipo de avaliação dos resultados do seu
trabalho mediúnico? Ou como, em pleno século 21, pode-se aceitar o uso de
objetos perfurocortantes, ou que se recomende irresponsavelmente a substituição
do tratamento convencional?
Os idólatras que se acercam deste
tipo de médiuns são pessoas que ainda não compreenderam que a morte é uma
contingência da vida e faz parte do processo natural, necessário para a
evolução do espírito. Entre estes devem ser incluídos médicos espíritas e suas
instituições ditas especializadas, que tem dado sustentação e legitimidade
“científica” às situações como esta.
Trata-se de um tema difícil, mas
que precisa ser enfrentado. Médiuns são seres humanos, imperfeitos, suscetíveis
às mazelas da vida. Falar sobre isso, lidar com esta realidade e assumir uma
posição de “tolerância zero” é fundamental. Não se trata de execrar ou condenar
ninguém a priori. Todos têm o direito de defesa amplo e irrestrito, mas daí
compactuar com qualquer forma de violência nas instituições espíritas é
inadmissível.
Isto é triste, ainda mais quando
se percebe que o espiritismo foi e deveria continuar a ser um brado contra a
ignorância, uma forma racional de enfrentar temas que historicamente foram
alijados da órbita da ciência exatamente pelas práticas violentas e pela
exploração mística e religiosa.
Ainda que seja tarde, parece-me fundamental compreender que a verdadeira potência do espiritismo está em sua
filosofia, ao sustentar a existência do espírito e a imortalidade da alma, a
reencarnação e a educação para a morte.