05 outubro 2023

ALEA JACTA EST!


Eugenio Lara*

Seja o que o acaso quiser. Deixa rolar. “A sorte está lançada!”, teria afirmado o imperador romano Júlio César a suas legiões no campo de batalha. Ou, em certas circunstâncias da vida, “lavamos as mãos”, como fez Pilatos com Jesus, alguns séculos depois. E deixamos rolar... “Deixa a vida me levar”. “Seja o que Deus quiser”, é o que diz o vulgo nessa expressão não somente popular, mas universal, pois em qualquer latitude ou longitude ela está presente, conforme o contexto religioso e simbólico.

Alá, Jeová, Buda, Krishna, Tupã, Brama, Zeus etc. seja qual nome for, as referências são semelhantes. É o maktub divino, o karma celestial, a vontade de Deus, o desejo dos deuses, a fatalidade e o destino determinando nossas vidas.

Quando algo foge do controle, o vulgo atribui a forças ocultas e sobrenaturais a causa de seu sofrimento, das desilusões, tragédias e infortúnios. O azar, o castigo, a condenação pairam sobre nossa cabeça, como se fosse a Espada de Dâmocles.

E as expressões religiosas a respeito são recorrentes em quase todas as culturas. É o lamento do ser humano diante da Divindade: “Se Deus quiser”, “Se Alá permitir”, “Valha-me Deus”. “Jeová é justo”, “Deus é fiel” etc. Talvez fosse melhor assumir que, para quem pensa e “sente” Deus dessa maneira, o que se deseja mesmo é um Deus milagreiro e justiceiro. Algo bem diferente do Deus Pai, do Deus Justo ensinado por Jesus de Nazaré e reassumido por Allan Kardec, ao sustentar que a soberana justiça e a suprema bondade são um dos vários atributos da Divindade.

Divindade esta que o próprio Kardec definiu, de modo pragmático, como Inteligência Suprema, Causa Primária de todas as coisas, a partir de miríades de informações a respeito, obtidas em reuniões mediúnicas diversas, por intermédio de vários médiuns e uma infinidade de espíritos comunicantes.

As religiões ensinam que nada acontece sem que Deus permita – Ele monitora nossos atos e tudo sabe, podendo com isso julgar, absolver ou condenar. No entanto, no contexto da Filosofia Espírita, em sua teodiceia, mesmo que fôssemos assim monitorados pela Divindade, o que vale é nosso desejo, nossa decisão. E isso nada tem de determinista, na medida em que não adota nenhum código, determinação ou profecia, não segue um script ou roteiro pré-estabelecido. Por mais idiota que seja determinada ação, ela tem dono, há um sujeito por trás dela, não um drone, um ser teleguiado, feito fantoche, um autômato. Trata-se, apenas, do resultado da ação do sujeito ou de um grupo de sujeitos, da volição como mola propulsora e o livre-arbítrio como atributo.

Difícil imaginar que o comportamento humano, individual e coletivo, possa ser previsto, fatalmente determinado, porque é um sistema complexo, com intrincada rede de afinidades, aversões, de conflitos e interesses gerados num volume incalculável, cujas variáveis são quase infinitas, interdependentes, interconectadas. É por isso que os Espíritos afirmaram a Kardec que não há fatalidade nos atos da vida moral.

Ou seja, estamos diante da imprevisibilidade em estado bruto, do acaso insidioso e impregnante, daquilo que é aleatório e incerto por natureza.

O acaso não é um nada, não é o nada como afirmaram os espíritos a Allan Kardec no século retrasado.

O acaso, a incausalidade, eis uma das molas mestras das relações humanas, da evolução intelecto-moral.

Algo inconcebível numa concepção de mundo quase toda fundada na física newtoniana. Daí a afirmação veemente de que o acaso não tem influência alguma na realidade simplesmente porque ele não existe, por ser algo inconcebível diante daquela visão de mundo mecanicista.

Ora, se existe o inusitado, o insólito, o singular, aquele fato sinistro, estranho e inesperado, a culpa é do livre-arbítrio, da casualidade das coisas, da força das coisas. Porque o acaso também faz parte de nossas vidas.

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* Eugenio Lara é membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita. Publicou em edição digital: Racismo e Espiritismo, Milenarismo e Espiritismo, Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico, Conceito Espírita de Evolução, Uma Visão Kardecista da Desobediência Civil, Os Quatro Espíritos de Kardec, dentre outros.

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