Seja o que o acaso quiser. Deixa rolar. “A sorte
está lançada!”, teria afirmado o imperador romano Júlio César a suas legiões no
campo de batalha. Ou, em certas circunstâncias da vida, “lavamos as mãos”, como
fez Pilatos com Jesus, alguns séculos depois. E deixamos rolar... “Deixa a vida
me levar”. “Seja o que Deus quiser”, é o que diz o vulgo nessa expressão não
somente popular, mas universal, pois em qualquer latitude ou longitude ela está
presente, conforme o contexto religioso e simbólico.
Alá, Jeová, Buda, Krishna, Tupã, Brama, Zeus etc. seja qual nome for, as referências são semelhantes. É o maktub divino, o karma celestial, a vontade de Deus, o desejo dos deuses, a fatalidade e o destino determinando nossas vidas.
Quando algo foge do controle, o
vulgo atribui a forças ocultas e sobrenaturais a causa de seu sofrimento, das
desilusões, tragédias e infortúnios. O azar, o castigo, a condenação pairam
sobre nossa cabeça, como se fosse a Espada de Dâmocles.
E as expressões religiosas a
respeito são recorrentes em quase todas as culturas. É o lamento do ser humano
diante da Divindade: “Se Deus quiser”, “Se Alá permitir”, “Valha-me Deus”.
“Jeová é justo”, “Deus é fiel” etc. Talvez fosse melhor assumir que, para quem
pensa e “sente” Deus dessa maneira, o que se deseja mesmo é um Deus milagreiro
e justiceiro. Algo bem diferente do Deus Pai, do Deus Justo ensinado por Jesus
de Nazaré e reassumido por Allan Kardec, ao sustentar que a soberana justiça e
a suprema bondade são um dos vários atributos da Divindade.
Divindade esta que o próprio
Kardec definiu, de modo pragmático, como Inteligência Suprema, Causa Primária
de todas as coisas, a partir de miríades de informações a respeito, obtidas em
reuniões mediúnicas diversas, por intermédio de vários médiuns e uma infinidade
de espíritos comunicantes.
As religiões ensinam que nada
acontece sem que Deus permita – Ele monitora nossos atos e tudo sabe, podendo
com isso julgar, absolver ou condenar. No entanto, no contexto da Filosofia
Espírita, em sua teodiceia, mesmo que fôssemos assim monitorados pela Divindade,
o que vale é nosso desejo, nossa decisão. E isso nada tem de determinista, na
medida em que não adota nenhum código, determinação ou profecia, não segue um
script ou roteiro pré-estabelecido. Por mais idiota que seja determinada ação,
ela tem dono, há um sujeito por trás dela, não um drone, um ser teleguiado,
feito fantoche, um autômato. Trata-se, apenas, do resultado da ação do sujeito
ou de um grupo de sujeitos, da volição como mola propulsora e o livre-arbítrio
como atributo.
Difícil imaginar que o
comportamento humano, individual e coletivo, possa ser previsto, fatalmente
determinado, porque é um sistema complexo, com intrincada rede de afinidades,
aversões, de conflitos e interesses gerados num volume incalculável, cujas variáveis
são quase infinitas, interdependentes, interconectadas. É por isso que os
Espíritos afirmaram a Kardec que não há fatalidade nos atos da vida moral.
Ou seja, estamos diante da
imprevisibilidade em estado bruto, do acaso insidioso e impregnante, daquilo
que é aleatório e incerto por natureza.
O acaso não é um nada, não é o
nada como afirmaram os espíritos a Allan Kardec no século retrasado.
O acaso, a incausalidade, eis uma
das molas mestras das relações humanas, da evolução intelecto-moral.
Algo inconcebível numa concepção
de mundo quase toda fundada na física newtoniana. Daí a afirmação veemente de
que o acaso não tem influência alguma na realidade simplesmente porque ele não
existe, por ser algo inconcebível diante daquela visão de mundo mecanicista.
Ora, se existe o inusitado, o
insólito, o singular, aquele fato sinistro, estranho e inesperado, a culpa é do
livre-arbítrio, da casualidade das coisas, da força das coisas. Porque o acaso
também faz parte de nossas vidas.
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* Eugenio
Lara é membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc)
e autor de Breve Ensaio Sobre o Humanismo Espírita. Publicou em edição digital:
Racismo e Espiritismo, Milenarismo e Espiritismo, Amélie Boudet, uma Mulher de
Verdade - Ensaio Biográfico, Conceito Espírita de Evolução, Uma Visão
Kardecista da Desobediência Civil, Os Quatro Espíritos de Kardec, dentre
outros.
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