Formou-se no
meio espírita a crença de que todas as aflições que atingem uma pessoa são causadas por ela própria,
nesta, ou em vidas passadas. Se ela a isso não deu causa nesta vida então é porque a causa se encontra em outras
vidas. Isso justificaria expressões
como “o acaso não existe”, ou “tudo o que acontece tem a sua razão de ser”. Nos casos de pobreza, diz-se que “se nasceu
pobre é porque fez por merecer em outra vida” ou que “a morte,
a doença e a fome não erram de endereço”.
Será isso
mesmo? Por que, então, Kardec e os espíritos consideraram o planeta Terra como um “mundo de provas e expiações” onde ainda existem
o egoísmo, a negligência
e o crime? Se tudo são expiações, onde então as “provas”? Não estariam os fatores
sociais entre as “causas atuais
das aflições”?
De fato, ao analisar as aflições terrenas Kardec não considerou as causas puramente sociais. Ele inicia indagando “por que nascem uns na miséria e outros na opulência, sem coisa alguma haverem feito que justifique essas posições? Por que uns nada conseguem ao passo que a outros tudo parece sorrir?” E lista, em seguida, uma série de sofrimentos, como a perda de entes queridos e a dos que são o amparo da família. Tais, ainda, os acidentes que nenhuma previsão poderia impedir; os reveses da fortuna, que frustram todas as precauções aconselhadas pela prudência; os flagelos naturais, as enfermidades de nascença, sobretudo as que tiram a tantos infelizes os meios de ganhar a vida pelo trabalho; as deformidades, a idiotia, o cretinismo, etc.1
A partir daí ele
discute o modo como essas questões se relacionam ao conceito de “Justiça Divina”, concluindo que “as
vicissitudes da vida derivam de uma causa e, logo, se Deus é justo, justa há de ser essa causa”. Fazendo uma distinção
entre as “causas atuais” e as “causas
anteriores das aflições”, ele conclui que, “se esta (a causa) não se encontra
na vida atual, há de ser anterior a
esta vida”. Se a pessoa nada fez na existência atual para merecer tão triste sorte, ela deve tê-lo
feito em uma vida anterior. “O infortúnio que, à primeira vista, parece imerecido tem sua razão de ser, e aquele que se encontra em sofrimento pode sempre dizer: ‘Perdoa-me, Senhor,
porque pequei’”.
Ocorre que em
nenhum momento Kardec afirma que esta seja a única explicação para todos os casos; logo adiante ele escreve que os sofrimentos da vida “são muitas vezes a consequência da falta
cometida”. Ora, se ele escreve “muitas vezes”, então é porque ele considera que “nem todas as vezes” se pode estabelecer essa correlação entre vicissitudes
da vida e erros cometidos no passado, especialmente quando se sabe que possíveis “causas sociais” nem eram objeto
de discussão à época; a Sociologia sequer havia nascido.
O que seriam, então,
essas “causas sociais”?
Por “causas sociais” entendem-se as ações ou omissões por parte de alguém, de um grupo, de uma instituição ou mesmo de parte da coletividade no exercício do seu livre- arbítrio, e que podem causar danos a terceiros. Incluem-se aqui, por exemplo, tragédias como a do Titanic, de Brumadinho, da Boate Kiss, do avião da Gol derrubado pelo Legacy, ou situações de anomia social como a miséria, a violência urbana, a alta letalidade policial, as mortes pelo tráfico, as balas perdidas. Podem-se incluir, como uma categoria próxima, as causas naturais, de vez que tsunamis, enchentes, deslizamentos e pandemias têm como agravantes questões sociais que algumas medidas de prevenção, se adotadas pelos governos e pela sociedade, podem minimizar.
Como vivemos
em um mundo de relacionamentos, as ações ou omissões, o uso ou abuso da liberdade de uns interferem na
vida e no bem-estar de outros que estão no seu
raio de alcance nas chamadas interações sociais. Assim, por exemplo, um
motorista que dirija embriagado
coloca em risco a segurança
e até mesmo a vida das pessoas que vierem a
interagir com ele no trajeto desenvolvido sob efeito da embriaguez. Se ele
atropela uma pessoa na faixa de
pedestres, não faz sentido pensar que aquilo “estava previsto”. Dirigir embriagado é uma decisão do indivíduo no
uso do seu livre-arbítrio. Embora possível, um
acidente jamais esteve
determinado por qualquer
espécie de “código
Divino”.
Não faz sentido pensar,
por exemplo, que durante 80 anos a espiritualidade esmerou-se em planejar a encarnação de
1.496 pessoas, nas mais variadas idades, para
morrerem afogadas nas águas geladas do Atlântico Norte no naufrágio do
Titanic. Faz menos sentido ainda
imaginar que o capitão do navio estivesse condenado a cometer erro tão grave, e que não teria sido dele a
decisão de desrespeitar as regras de navegação em uma região sabidamente marcada pela presença
de icebergs; ou pensar que alguma divindade haja influenciado os engenheiros
para instalarem quantidade insuficiente de barcos salva-vidas de modo a viabilizar as mortes de tantas pessoas.
Também no
caso da atual pandemia de covid-19, qual o sentido de pensar que ao longo de um século as encarnações tenham sido programadas para que os espíritos reencarnassem em um país e não em outro – haja vista as enormes diferenças na quantidade de
mortes entre os países – e que tenha sido planejado o momento exato de fazer saltar o vírus do mundo animal para
a espécie humana tendo em vista a ocorrência
dessa tragédia? Que deus teria se dado ao trabalho de influenciar os
processos de escolha dos governantes
de cada país de modo a colocar nos postos relevantes o perfil adequado para adotar ou negligenciar nas medidas de
prevenção, uso de máscaras e vacinação que salvaram vidas ou condenaram à morte mais de 5 milhões de pessoas em razão da pandemia?
Em uma situação,
durante a pandemia, várias pessoas foram contaminadas por um único jovem que entendeu não necessitar se isolar enquanto
estava com diagnóstico positivo, e que fez uso da piscina do condomínio. A situação só
foi percebida ao final da tarde, quando um morador
o denunciou. Àquela altura várias pessoas já haviam compartilhado o ambiente da piscina com ele e, alguns dias depois, muitas delas manifestaram a doença, inclusive uma
família inteira, pai, mãe e três filhos que haviam passado a tarde com ele na piscina. Onde a responsabilidade e o
livre-arbítrio desse jovem? Não
deveria ele evitar expor as outras pessoas ao risco de contaminação? Outra
família foi contaminada por um senhor
que se sentiu no direito de ir fazer compras no supermercado estando contaminado. Com fortes sintomas,
ele espirrou com a máscara no queixo ao lado
de uma senhora e sua filha, que se afastaram de pronto. Tarde demais;
três dias depois a garota manifestou os sintomas e a mãe, assintomática, não atentou que estava
contaminada, transmitindo para o marido e o filho. Muitas pessoas mundo afora terminaram em uma UTI ou até mesmo perderam
a vida em virtude desse tipo de negligência.
Assim também o
desemprego, a moradia precária, a miséria a desnutrição e a fome não dependem apenas da ação dos
indivíduos; ao contrário, são um claro exemplo de causas puramente sociais.
Afirmar que as pessoas que a elas estão expostas
“estão resgatando débitos de
vidas passadas”, mais do que indiferença para com a dor alheia, representa um total desconhecimento da
dinâmica social. Qualquer pessoa minimamente
informada sobre economia
política sabe que o sistema
capitalista, para funcionar
“adequadamente”, requer uma taxa de desemprego, maior ou menor de acordo
com a conveniência, mediante a qual a
“mão invisível do mercado” regula o valor dos salários. Atribuir a responsabilidade pelo desemprego às pessoas desempregadas, além de ignorância, demonstra falta de caridade.
O simples exame
da pirâmide social deixa claro o quanto as pessoas, sobretudo as mais fragilizadas, sofrem o impacto das
políticas econômicas que mudam a cada governo.
Uma lista enorme de mazelas sociais como precarização do trabalho,
moradias insalubres, desnutrição e
mortes são decorrências diretas de modelos sociais que priorizam ganhos financeiros, acumulação de riquezas,
ambição desmedida em detrimento das necessidades humanas de trabalho, moradia, educação, saúde, segurança física
e alimentar. Atribuir às mais de 2 bilhões
de pessoas no planeta a responsabilidade pelo desemprego e a fome a que estão expostas
é desconsiderar o impacto que as políticas
públicas dos governos
exercem sobre a vida dos seus concidadãos, sobretudo sobre os
desprovidos de recursos materiais.
Os espíritos
já nos advertiram que a desigualdade social é criação
humana; nada tem a ver com Deus ou com alguma “lei
natural”.2 Por
seu livre-arbítrio, homens, governos e
sociedades promovem o bem-estar, a vida digna e o crescimento espiritual para
todos, ou a fome, a doença e a
morte para muitos, gerando provações que não existiriam se não fossem o egoísmo
socialmente cultivado e a dureza
que vigora nos corações humanos.
Sob um olhar
estritamente doutrinário, essas inúmeras situações a que estamos sujeitos pelo simples fato de estarmos
encarnados na Terra em regime de aprendizado,
devem ser entendidas como “provas”, se nada fizemos no passado para que
elas ocorressem. Para aqueles, ao contrário, cujas
consciências culpadas se veem “resgatando” danos causados a terceiros em algum momento do seu passado
próximo ou remoto - e somente nestes
casos - essas mesmas situações podem ser entendidas como “expiações”.
Convém lembrar que a ideia de “Justiça Divina” é uma criação humana destinada a atender à nossa necessidade de explicar a vida sob o ponto de vista de uma moral religiosa que privilegia a punição, em vez de uma visão mais pedagógica orientada pela ideia do aprendizado. Os espíritos que dialogaram com Kardec nos apresentam as situações da vida cotidiana como oportunidades nas quais vamos aprendendo a atender aos “desígnios de Deus” e a “cumprir a parte que nos toca na obra da criação”. No exercício do seu livre- arbítrio e sempre que as condições o permitam, os espíritos “escolhem” as experiências mais adequadas ao seu aprendizado, mas essa escolha se dá apenas em termos gerais. Escolhe-se o “gênero das provações”, e não os mínimos detalhes da existência humana. “As particularidades correm por conta da posição em que vos achais”. Muitos acontecimentos “se originam das circunstâncias e da força mesma das coisas.”3
As imaginadas
"intervenções Divinas" são ações humano-espirituais no sentido de prevenir ou minimizar os efeitos das
tragédias que causam sofrimento aos seres humanos, como se fosse Deus agindo por meio da sua criação. Quando elas
se tornam inevitáveis, às vezes pela
negligência dos próprios homens, é a nossa visão de mundo, junto às instruções espirituais da nossa tradição, que nos diz
que elas podem servir de “provas” ou “expiações” a depender do que exista
de registros na consciência de cada pessoa
por elas vitimadas.
Desse modo é
interessante evitar afirmações como “está colhendo o que plantou em outras vidas” ou “sofre hoje o que fez
sofrer no passado”. Nem toda experiência representa, necessariamente, uma “expiação”, e sua razão de ser pode ser a
simples contingência a que estamos
sujeitos todos os seres da criação. Nas palavras de Chico/Emmanuel, muitos acontecimentos podem ser simplesmente lições preciosas e naturais na escola da vida,
4 e Kardec já alertava que nem todo
sofrimento suportado neste mundo denota a existência de uma determinada falta. “Muitas vezes são simples provas
buscadas pelo espírito para concluir a sua depuração
e ativar o seu progresso”.5
Muito do que acontece
no mundo decorre
da “escolha entre o fazer e o não fazer” dos indivíduos, que é o que caracteriza a liberdade de agir dos seres humanos,6 A negligência,
a omissão e o crime não estão previstos nos “códigos Divinos” senão como possibilidades. Individual ou
coletivamente o homem cria as condições da sua experiência na Terra em uma gama infinita de situações
que representam oportunidades de aprender, de
desenvolver sua capacidade de reação e de adaptação, exercícios de compreensão
e de paciência, de resignação, de luta e até de perdão.
Portanto, é sempre bom atentar para que tipo de inciativas estamos validando com o nosso apoio, nosso respaldo, nossa atuação social. São bem-aventuradas as pessoas, as coletividades e os governantes que propõem, defendem, apoiam ou implementam medidas destinadas a erradicar a fome, a sede, a doença, a criminalidade, a falta de teto e de agasalho, que são alguns dos sofrimentos socialmente evitáveis que atingem os seres humanos durante o seu aprendizado na Terra. Mas ai daquelas pessoas, coletividades e governantes que, ao contrário, implementam ou apoiam medidas que resultam em miséria, abandono, provação e morte. Estas, quando colocadas pelas circunstâncias da vida na condição de vítimas dessas mesmas situações, se sentirão "expiando o seu passado".
Então, não será Deus que lhes estará impondo qualquer tipo de punição ou castigo; serão elas mesmas que, premidas pela própria consciência culpada, se sentirão, de acordo com o texto do Evangelho, "constrangidas a gemer e a chorar”.7
________________________
1 Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V itens 4 a 9. Ed. FEB, Brasília/DF.
2 Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 806. Ed. FEB, Brasília/DF.
3 Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 132 e 258 a 273. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. IV itens 25 e 26. FEB, Brasília/DF.
4 Xavier, Francisco C. Rumo Certo, pelo espírito Emmanuel, lição 37. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
5 Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. V itens 4 a 9. FEB, Brasília/DF.
6 Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 257. Ed. FEB, Brasília/DF.
7
Bíblia de Jerusalém, Evangelho de Mateus, cap. 25 e Evangelho
de Lucas, cap.
6 v.24-25. Ed. Paulus, São Paulo/SP.
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