20 setembro 2024

UM OLHAR ESPÍRITA SOBRE A BISSEXUALIDADE - ELIAS INÁCIO DE MORAES

No livro Vida e Sexo há uma afirmação de Emmanuel que esclarece bem a questão da bissexualidade, que ainda hoje é objeto de muitas dúvidas no meio espírita. O desconhecimento do assunto tem levado a comentários preconceituosos até mesmo por parte de palestrantes, o que torna o assunto merecedor de maior atenção por todos nós. Em razão disso, é interessante retomar o tema, já definido por Emmanuel em 1970, quando ele ponderou que "através de milênios e milênios, o Espírito passa por fileira imensa de reencarnações, ora em posição de feminilidade, ora em condições de masculinidade, o que sedimenta o fenômeno da bissexualidade, mais ou menos pronunciado, em quase todas as criaturas".[1]

Do ponto de vista espírita, sexo biológico é a conformação morfofisiológica a que estamos sujeitos todos os espíritos que encarnamos na Terra e que temos, nessa função, o meio programado pela natureza para a nossa reprodução. Como decorrência, existe a atração sexual, de natureza biopsíquico-espiritual, e também o afeto - daí o termo homoafetividade - que se traduz nas ligações afetivas que se estabelecem entre as pessoas, e que não se interrompem quando elas passam de uma para outra existência física.[2]

Como os espíritos podem encarnar em corpos masculinos ou femininos, o modo como a sua sexualidade se manifesta está muito mais ligado aos seus ascendentes espirituais que à sua fisiologia. Tanto Allan Kardec quanto Emmanuel atribuem à transição de um para o outro sexo, no processo da reencarnação, o fato de a atração sexual poder dar-se tanto entre pessoas do sexo oposto quanto entre pessoas do mesmo sexo. Uma pessoa que reencarnou em uma experiência sexual diferente da anterior viveria um natural processo de adaptação a essa nova realidade,[3] o que pode se estender por um tempo maior ou menor, dependendo das circunstâncias e das disposições psíquicas de cada espírito. É assim que ele pode apresentar atração sexual por pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo, de ambos os sexos ou não sentir atração sexual por ninguém, a depender, inclusive, de como ressurgem na existência atual as suas vinculações afetivas anteriores. Dessa complexidade emerge uma variedade de conformações de gênero, o que levou Emmanuel a afirmar que "o homem e a mulher serão, desse modo, de maneira respectiva, acentuadamente masculino ou acentuadamente feminina, sem especificação psicológica absoluta.[4]

Há dois casos[5] que podem ilustrar o modo como a bissexualidade se manifesta. O primeiro deles é o de um amigo, palestrante espírita de invejável segurança doutrinária e conduta irrepreensível, que já foi casado, teve filhos, mas que não conseguiu manter a união por mais tempo. Separaram-se consensualmente e ele estabeleceu uma segunda união, desta vez homoafetiva, com outro homem, portanto. Depois de quase dez anos nessa convivência, ele novamente se separou e estabeleceu uma terceira união, agora, de novo, com uma mulher. Como o caso é recente, nós, amigos do casal, estamos todos torcendo para que eles consigam se sentir realizados e felizes.

O outro caso é antigo, e foi o que primeiro me estimulou a pesquisar o assunto sob a ótica do Espiritismo. Semelhante ao primeiro, também envolve pessoa espírita, dedicada, generosa, exemplo de ser humano. Trata-se de uma amiga que viveu uma primeira relação heteroafetiva, da qual teve uma filha. Depois de um processo de separação ela viveu por um tempo solteira, mas terminou por estabelecer uma nova relação, desta vez homoafetiva, com outra mulher. Essa relação durou alguns anos, até quando ela conheceu outro homem com quem estabeleceu o seu terceiro relacionamento, agora em outra relação heteroafetiva, da qual teve mais um filho. Faz mais de vinte anos que ela e seu marido vivem muito bem essa sua terceira união.

Como se vê, não há nenhuma razão, sob um olhar espírita, para qualquer estranhamento em relação à bissexualidade, como também a outras manifestações de gênero, de vez que, de acordo com Emmanuel, a questão tem a ver muito mais com os “preconceitos da sociedade, constituída na Terra pela maioria heterossexual, do que com as verdades simples da vida”.[6] E quando entram em cena os “preconceitos da sociedade” a questão assume um caráter de gravidade, que passa a requerer a nossa atenção enquanto pessoas espíritas pelo quanto de sofrimento e de tragédia esses casos acrescentam ao cotidiano humano.

Mesmo com tudo isso tão evidente, chama a atenção o intencional silêncio que as pessoas LGBT se veem constrangidas a adotar no ambiente da casa espírita, porque não se sentem à vontade para expressarem em nosso meio os seus sentimentos, tidos quase sempre como “reprováveis”. Por falta de uma maior compreensão dos aspectos psicológicos envolvidos, é comum no meio espírita pessoas LGBT[7] serem julgadas como “pervertidas", "imorais" ou "promíscuas", simplesmente por manifestarem alguns aspectos mínimos da sua identidade de gênero. Muitas vezes elas deixam de participar das atividades espíritas simplesmente porque as pessoas heterossexuais, que são maioria, não aceitam que elas sequer se apresentem como são. No mínimo exige-se delas um pacto de silêncio e uma fachada de falsidade, como se a questão não existisse, numa atitude de puro preconceito disfarçado de moralidade.

Recentemente repercutiu nas redes sociais uma entrevista concedida por um conhecido palestrante e escritor espírita que associou bissexualidade a promiscuidade, dizendo ainda que “a coisa tá partindo pra bandalheira”. Demonstrando total desconhecimento do assunto, ele acusou as pessoas bissexuais de promoverem “apologia ao corpo” e de “sexualização” das relações, no que foi criticado por pessoas que se sentiram ofendidas com esses julgamentos. Ao final ele se mostrou ainda mais preconceituoso ao afirmar que assuntos envolvendo “negros, pobres, homossexuais” são “ativismo”, e que se referem apenas ao corpo, não tendo nenhuma relação com o espírito. É como se o "normal" fosse ser branco, rico e hétero, e o contrário, meras anomalias. Estas são pautas, disse ele, que “fomentam brigas”, e por isso devem ser evitadas, mesmo que ele mesmo não as tenha evitado e tenha se sentido no direito de opinar sem nenhum conhecimento do assunto.

Todos sabemos que a "apologia do corpo" não é um apanágio das pessoas LGBT, sendo até mais comum entre pessoas heterossexuais. Uma visita a qualquer academia de ginástica ou um passeio em um shopping center deixa isso bastante evidente. O mesmo se verifica quanto à "sexualização das relações", muito mais presente nas uniões heteroafetivas. Basta um olhar para a sucessão de outdoors espalhados pelas cidades, exibindo corpos sensuais como meio de estimular a venda dos mais variados produtos e serviços, para perceber que a questão é bem mais complexa. Quanto às “brigas” que ele alega, são nada mais nada menos que as justas reações de indignação das pessoas que se sentem agredidas por manifestações de preconceito como as que ele cometeu. Se todos respeitassem o direito alheio de se expressar e de viver como são essas “brigas” não existiriam. O mais grave é que, como existe o preconceito, para muito além de simples “brigas” os insultos se transformam em agressões verbais, que às vezes evoluem para agressões físicas e até mesmo para assassinatos, colocando o Brasil em uma triste posição de país que mais assassina pessoas LGBT todos os anos.[8] Somente no ano passado o preconceito que os seus comentários alimentam foi a causa de 224 assassinatos e de mais 13 suicídios.[9]

Outro importante palestrante espírita, médico, abordou o assunto utilizando como base para os seus argumentos as disposições fisiológicas dos seres humanos e, como era de se esperar, todo a sua carga de preconceito. Alegando uma falsa cientificidade, ele inclusive acusou de "ativismo" os pesquisadores que chegam a conclusões diferentes das suas por integrarem perspectivas sociais ou psicológicas como a emoção e o afeto, ou até mesmo aspectos espirituais, em uma arrogância científica incompatível com o espírito de abertura que a doutrina espírita nos propõe.[10]

Estudar essa temática à luz do entendimento espírita implica levar em conta os recentes estudos desenvolvidos por pesquisadores respeitáveis em todas as áreas do conhecimento humano, e não apenas na fisiologia, sem o que é impossível manter o Espiritismo sintonizado com o pensamento científico da atualidade, como propunha Kardec. Examinar a questão por todos os ângulos antes de emitir uma opinião, ouvir as próprias pessoas que vivem essas experiências, muitas delas espíritas dedicadas, como nos casos acima, lançando um olhar espiritual para o assunto, de modo a fazer frente ao preconceito, que é causa de sofrimento para muitos espíritos quando de sua travessia pela experiência terrena. O objetivo final precisa ser, necessariamente, propiciar a todas as pessoas, de todos os gêneros, conforme pondera o espírito Emmanuel, “atenção e respeito, em pé de igualdade ao respeito e à atenção devidos às criaturas heterossexuais”, até porque, nas palavras dele, “a aplicação do sexo, ante a luz do amor e da vida, é assunto pertinente à consciência de cada um”.[11]



[1]     Xavier, Chico. Vida e Sexo, lição 21, pelo espírito Emmanuel. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

[2]     Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, questões 200 a 202, 217 e 218-a. Ed. FEB, Brasília/DF.

[3]     Kardec, Allan. Revista Espírita, Jan/1866 pag.4. IDE, Araras/SP. Xavier, Chico. Vida e Sexo, pelo espírito Emmanuel, lição 21. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

[4]     Xavier, Chico. Vida e Sexo, pelo espírito Emmanuel, lição 21. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ. Importante destacar que o termo "transexualidade" contido no texto não é atualmente utilizado com aquele sentido atribuído pelos autores.

[5]     Os dois casos tiveram algumas informações alteradas de modo a proteger a identidade das pessoas envolvidas.

[6]     Xavier, Chico. Vida e Sexo, lição 21, pelo espírito Emmanuel. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

[7]     LGBT refere-se a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais incluindo ainda os gêneros Queer, Intersexuais, Pansexuais, Assexuais, e outros que possam vir a ser considerados.

[8]     https://exame.com/brasil/pelo-12o-ano-consecutivo-brasil-e-pais-que-mais-mata-transexuais-no-mundo/

[9]     https://www.poder360.com.br/brasil/relatorio-registra-237-mortes-violentas-de-pessoas-lgbts-no-brasil-em-2020/

[10]   https://www.febnet.org.br/blog/geral/noticias/discussao-sobre-genero/

[11]   Xavier, Chico. Vida e Sexo, pelo espírito Emmanuel, lição 21 e apresentação do livro. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.

*(Sociólogo e pesquisador espírita, colaborador da Fraternidade Espírita, da Aephus – Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais e da Federação Espírita do Estado de Goiás. Autor de Contextualizando Kardec: do séc. XIX ao XXI e de O Processo Mediúnico: Possibilidades e Limites na Produção do Conhecimento Espírita).

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