O PARADIGMA IGNORADO
(*)
Maurice Herbert Jones foi um pensador espírita pernambucano radicado em Porto Alegre-RS,
presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul, de 1978 a 1984, um dos
criadores do ESDE (Campanha de Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita),
presidente da Sociedade Espírita Luz e Caridade (atual Centro Cultural Espírita
de Porto Alegre) por vários mandatos, Assessor da Presidência da
CEPA-Associação Espírita Internacional, desencarnado em 20.06.2021, aos 92
anos.
“Os antigos deuses envelheceram ou morreram e
outros ainda não nasceram.” (Emile Durkheim)
O processo civilizatório a que estamos submetidos transcorre
como se nosso planeta fosse um gigantesco e dinâmico palco com cenários em
permanente mutação e atores em rodízio constante.
Este imenso espetáculo é dirigido por “matrizes ideológicas”
ou paradigmas que, num dado momento e cultura, tornam-se hegemônicos e,
portanto, eleitos para administrar o processo até que, esgotada sua virilidade,
senilizados, são substituídos por novos paradigmas.
Convém reconhecer, todavia, que o envelhecimento ou até
mesmo a morte dos velhos deuses não é facilmente reconhecida. Sendo muito
penosa a orfandade, é preferível um deus mumificado a deus nenhum, prolongando,
assim, a crise de referências ao mesmo tempo em que os candidatos à sucessão
são submetidos aos testes necessários.
A crise existencial do nosso tempo tem como uma das
principais causas o esgotamento dos modelos conceptuais ainda vigentes,
crescentemente incapazes de oferecer segurança e identidade.
O psicanalista Hélio Pelegrini afirmou em um artigo que a
angústia metafísica que nos aflige clama por uma filosofia pública sobre o
significado e objetivo da vida, capaz de orientar toda a atividade humana, isto
é, uma visão de homem e de mundo que possa ser racionalmente universalizada.
Os relatos bíblicos, síntese conceptual daqueles tempos e
cultura, nos falam, essencialmente, de um contrato estabelecido entre o Criador
e as criaturas a partir do momento em que estas conquistam a racionalidade,
isto é, a liberdade de desobedecer, que inaugura a história humana. Este
contrato é reformável na medida em que precisa ajustar-se aos novos níveis de
consciência e liberdade conquistados pelo homem. A iniciativa, porém, como a
história nos ensina, cabe ao homem.
Quando os valores tradicionais começam a perder significado
e eficácia, um novo contrato, um novo conjunto de valores deve ser concebido.
Atendendo a esta determinação histórica, Kardec, com
extraordinária lucidez, identifica sinais de esgotamento do paradigma vigente e
lidera uma revolução conceptual de base racional e humanista que, superando o
organocentrismo iluminista propõe uma visão espiritocêntrica, isto é, que
considera a dimensão extrafísica ou espiritual como fundamental, afetando,
drasticamente, a forma pela qual o homem, o mundo e a história são percebidos.
A natureza sintética do modelo conceptual Kardequiano é
evidente. Como uma flor tardia da primavera iluminista o Espiritismo surge como
uma esperança de renovação capaz de oferecer ao homem a segurança e a
identidade perdidas, equipando-o, assim, para avançar, confiante, mais uma etapa
no processo evolutivo.
Quase um século e meio depois de seu surgimento, o
Espiritismo, naquilo que o faz singular, dinâmico, revolucionário e universal é
desconhecido pela maioria esmagadora dos próprios espíritas que, incapazes de
compreender o alcance e a profundidade da monumental proposta de Kardec,
insistem, ingenuamente, em interpretá-la à luz dos paradigmas agonizantes ou
mumificados que teimam em nos influenciar, reduzindo-a, assim, a uma mera seita
religiosa.
Significativamente, foi exatamente esta a interpretação do
Abade François Chesnel em artigos publicados no jornal L’Univers de Paris em
abril de 1859 e tão veementemente contestada pelo fundador do Espiritismo,
conforme ficou registrado na “Revue Spirite” de maio e julho daquele ano.
Como se vê, o padre Chesnel fez escola.
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