A
criança é a vítima...
“A violência sexual é um assassinato da alma da criança”
Dr. Ricardo Breier – presidente da OAB/RS
O caso da criança de dez anos, residente na
cidade de São Mateus, no Espírito Santo, que acusa o tio de estuprá-la durante
quatro anos e finalmente engravidá-la, chamou atenção da sociedade brasileira para
o gravíssimo problema do abuso sexual infantil. De acordo com estudo do IPEA-Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada e do Ministério da Saúde, as mulheres são as
maiores vítimas de estupros no Brasil. Porém, mais de 50% dos casos dessa tragédia,
cruel e nefasta, reúne ataques contra crianças de idade até 13 anos.
Queixando-se de dores abdominais, a criança
foi levada pela avó ao atendimento médico, sendo descoberto que estava grávida.
Como jamais desejasse essa gravidez, mesmo porque sua relação sexual era
abusiva e criminosa, decidiu interromper a gestação recorrendo ao judiciário,
por sua avó e representante legal. A autorização foi prontamente concedida.
O caso chegou ao conhecimento público e isso
acirrou a luta ideológica de grupos a favor e contra a descriminalização do
aborto, aproveitando o fato para defender as suas posições. Após breves e tímidas manifestações de
solidariedade à vítima, foi desconsiderado, como menos importante, o drama, o sofrimento, a
violência do estupro continuado vivido por ela, nos melhores anos de sua
infância. O interesse efetivo dos grupos antagônicos concentrou-se na decisão
da vítima de interromper a gestação.
Sem dúvida, o debate de temas polêmicos como
o aborto é muito importante, pois leva a sociedade a refletir, amadurecer e
posicionar-se sobre um assunto tão sensível, grave e urgente.
Não obstante, para tudo, há tempo e lugar.
Agora,
todas as ações e energias deveriam dirigir-se ao acolhimento dessa criança. Nada
era mais importante do que compreender e respeitar a decisão da vítima em
interromper a gravidez indesejada. Mas o que se viu foi o oportunismo indiferente
à dor física, psicológica e moral, que o silêncio e as lágrimas da criança
revelaram às equipes de saúde que a atenderam. Em frente ao CISAM, Centro Integrado de Saúde
Amaury de Medeiros, no Recife (PE), centro de referência onde a criança estava
sendo atendida, a turba de insensatos se manifestava com gritarias, cartazes, palavras
de ordem e xingamentos. Ninguém estava preocupado com a criança abusada, mas declarando-se
contra o aborto legalmente previsto e judicialmente autorizado. O médico Olympio Moraes Filho ouviu aos gritos a pecha de “assassino!”. Mas não se intimidou com as ofensas e ameaças,
e concluiu o seu trabalho, convicto de que aquela gravidez oferecia riscos de
morte à paciente. O Dr. Moraes Filho, há doze anos, foi excomungado pela Igreja
Católica de Pernambuco, por haver interrompido a gravidez de uma menina de 9
anos, estuprada pelo padrasto.
É repugnante a exploração da dor de uma
criança para sustentar posições políticas ou ideológicas, inclusive as que
apelam pela fé religiosa. O que se impõe é a máxima ponderação e respeito,
compaixão e plena solidariedade, tentando o resgate possível de dignidade
humana dessas crianças sofridas. É o mínimo que todos devemos a elas, além do
pedido de desculpas, por nossa incapacidade em zelar por sua integridade e
segurança, evitando a repetição dessas tragédias de consequências tão sombrias
e dolorosas. Como sociedade que deseja tornar-se socialmente responsável e humanizada,
precisamos compreender ao invés de julgar, consolar e não atormentar,
esclarecer e não obscurecer as vítimas da cultura machista, misógina, egoísta,
preconceituosa e violenta que ainda predomina em nosso País.
A CEPABrasil – Associação Brasileira de
Delegados e amigos da CEPA, observa os
fatos em seu contexto, com suporte na filosofia espírita humanista, laica,
evolucionista e livre-pensadora, tateando caminhos para entender a complexidade
da vida e da jornada do espírito imortal. Não defendemos o aborto generalizado
e irresponsável, mas reconhecemos que há circunstâncias muito particulares a
ser consideradas e decididas conforme a vontade da gestante e a lei, como neste
caso. É preciso respeito e acolhimento ao desamparo das vítimas, além de toda a
assistência médica, psicológica e social. O humanismo deve nortear as nossas
ações e decisões sempre.
Para finalizar, deixamos como reflexão, uma
poesia do poeta turco Nazim Hikmet, falecido em 1963.
Antes de tudo o ser humano
“Não viva nesta terra
como
um estranho
Ou como um turista da natureza.
Viva neste mundo
como na casa do seu pai:
creia no trigo, na terra, no mar,
mas antes de tudo creia no ser humano.
Ame as nuvens, os carros, os livros,
mas antes de tudo ame o ser humano.
Sinta a tristeza do ramo que seca,
do astro que se apaga,
do animal ferido que agoniza,
mas antes de tudo
sinta a tristeza e a dor do ser humano.
Que lhe deem alegria
todos os bens da terra:
a sombra e a luz lhe deem alegria,
mas sobretudo, a mãos cheias,
lhe dê alegria o ser humano!”
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