25 agosto 2020

 


A criança é a vítima...

A violência sexual é um assassinato da alma da criança

Dr. Ricardo Breier – presidente da OAB/RS

O caso da criança de dez anos, residente na cidade de São Mateus, no Espírito Santo, que acusa o tio de estuprá-la durante quatro anos e finalmente engravidá-la, chamou atenção da sociedade brasileira para o gravíssimo problema do abuso sexual infantil. De acordo com estudo do IPEA-Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Ministério da Saúde, as mulheres são as maiores vítimas de estupros no Brasil. Porém, mais de 50% dos casos dessa tragédia, cruel e nefasta, reúne ataques contra crianças de idade até 13 anos.

Queixando-se de dores abdominais, a criança foi levada pela avó ao atendimento médico, sendo descoberto que estava grávida. Como jamais desejasse essa gravidez, mesmo porque sua relação sexual era abusiva e criminosa, decidiu interromper a gestação recorrendo ao judiciário, por sua avó e representante legal. A autorização foi prontamente concedida.

O caso chegou ao conhecimento público e isso acirrou a luta ideológica de grupos a favor e contra a descriminalização do aborto, aproveitando o fato para defender as suas posições.  Após breves e tímidas manifestações de solidariedade à vítima, foi desconsiderado, como  menos importante, o drama, o sofrimento, a violência do estupro continuado vivido por ela, nos melhores anos de sua infância. O interesse efetivo dos grupos antagônicos concentrou-se na decisão da vítima de interromper a gestação.

Sem dúvida, o debate de temas polêmicos como o aborto é muito importante, pois leva a sociedade a refletir, amadurecer e posicionar-se sobre um assunto tão sensível, grave e urgente.

Não obstante, para tudo, há tempo e lugar.

 Agora, todas as ações e energias deveriam dirigir-se ao acolhimento dessa criança. Nada era mais importante do que compreender e respeitar a decisão da vítima em interromper a   gravidez indesejada.  Mas o que se viu foi o oportunismo indiferente à dor física, psicológica e moral, que o silêncio e as lágrimas da criança revelaram às equipes de saúde que a atenderam.  Em frente ao CISAM, Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, no Recife (PE), centro de referência onde a criança estava sendo atendida, a turba de insensatos se manifestava com gritarias, cartazes, palavras de ordem e xingamentos. Ninguém estava preocupado com a criança abusada, mas declarando-se contra o aborto legalmente previsto e judicialmente autorizado. O médico Olympio Moraes Filho ouviu aos gritos a pecha de “assassino!”.  Mas não se intimidou com as ofensas e ameaças, e concluiu o seu trabalho, convicto de que aquela gravidez oferecia riscos de morte à paciente. O Dr. Moraes Filho, há doze anos, foi excomungado pela Igreja Católica de Pernambuco, por haver interrompido a gravidez de uma menina de 9 anos, estuprada pelo padrasto.

É repugnante a exploração da dor de uma criança para sustentar posições políticas ou ideológicas, inclusive as que apelam pela fé religiosa. O que se impõe é a máxima ponderação e respeito, compaixão e plena solidariedade, tentando o resgate possível de dignidade humana dessas crianças sofridas. É o mínimo que todos devemos a elas, além do pedido de desculpas, por nossa incapacidade em zelar por sua integridade e segurança, evitando a repetição dessas tragédias de consequências tão sombrias e dolorosas. Como sociedade que deseja tornar-se socialmente responsável e humanizada, precisamos compreender ao invés de julgar, consolar e não atormentar, esclarecer e não obscurecer as vítimas da cultura machista, misógina, egoísta, preconceituosa e violenta que ainda predomina em nosso País.  

A CEPABrasil – Associação Brasileira de Delegados e amigos da CEPA,  observa os fatos em seu contexto, com suporte na filosofia espírita humanista, laica, evolucionista e livre-pensadora, tateando caminhos para entender a complexidade da vida e da jornada do espírito imortal. Não defendemos o aborto generalizado e irresponsável, mas reconhecemos que há circunstâncias muito particulares a ser consideradas e decididas conforme a vontade da gestante e a lei, como neste caso. É preciso respeito e acolhimento ao desamparo das vítimas, além de toda a assistência médica, psicológica e social. O humanismo deve nortear as nossas ações e decisões sempre.

Para finalizar, deixamos como reflexão, uma poesia do poeta turco Nazim Hikmet, falecido em 1963.

Antes de tudo o ser humano

“Não viva nesta terra

 como um estranho

Ou como um turista da natureza.

Viva neste mundo

como na casa do seu pai:

creia no trigo, na terra, no mar,

mas antes de tudo creia no ser humano.

Ame as nuvens, os carros, os livros,

mas antes de tudo ame o ser humano.

Sinta a tristeza do ramo que seca,

do astro que se apaga,

do animal ferido que agoniza,

mas antes de tudo

sinta a tristeza e a dor do ser humano.

Que lhe deem alegria

todos os bens da terra:

a sombra e a luz lhe deem alegria,

mas sobretudo, a mãos cheias,

lhe dê alegria o ser humano!”

A diretoria

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