Dirce Carvalho Leite – Pedagoga e Presidente do CCEPA – Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, RS, Brasil.
Por um tempo longo demais, a Igreja tradicional admoestou seus fiéis com a máxima: “Fora da Igreja não há salvação”. Allan Kardec, corajosamente, ousou discordar e apresentou uma alternativa qualitativa ao propor: “Fora da Caridade não há salvação”. Nesta bandeira, o indivíduo dava um passo necessário na superação da heteronomia para a responsabilidade autônoma, que vislumbra o valor das próprias escolhas e das vitórias individuais, diante de uma ação intransferível e reflexiva, frente à realidade social em que vive.
Cento
e sessenta e seis anos são passados do lançamento da Filosofia Espírita por
Allan Kardec. Profundas transformações ocorreram em todas as áreas do
conhecimento e da vida humana, em geral. Todas as conquistas científicas,
tecnológicas e filosóficas não foram suficientes, no entanto, para fazer da
Terra um lugar de paz, de fraternidade e de regeneração como sonhava Kardec,
que via no Espiritismo um protagonismo relevante para que isso se
concretizasse.
A
proposta da caridade, tão necessária e enfaticamente defendida por Kardec,
mostrou-se insuficiente, paliativa, mais como um amortizador de consciências
diante do bem a ser feito, do que um dispositivo eficaz em seus resultados de
transformação da realidade social. A prática da caridade não tem servido como
um escudo ao medo de omissão e indiferença diante do sofrimento humano? Ela não
tem trazido um conforto íntimo ao caridoso, sem a força de mudanças reais
desejáveis? A caridade que praticamos, com boas intenções, tem concretizado a
justiça social?
Kardec
acreditava na progressividade das ideias. Tudo o que propôs não foi dogmático.
Fico pensando que, se ele vivesse hoje, não proporia, quem sabe, a máxima:
“Fora da Justiça Social não há salvação”. Essa “salvação”, por certo, poderia
ser compreendida como “evolução”, que faria do mundo um lugar mais igualitário,
mais justo, com mais paz, com mais felicidade para a humanidade e, como
consequência, espíritos mais avançados intelectual e moralmente.
Ouvindo,
outro dia, numa “live”, a fala inspiradora do respeitado professor Luiz
Signates, eu me deparei com a frase sua que merece ser compartilhada: “Justiça
não se faz com caridade, se faz com políticas sociais, com compreensão da
verdadeira cidadania”. Gosto de uma definição simples e acessível sobre o que
são políticas: “são guias de ação”. Quem não pode compreender isso? Oportuna é,
então, a pergunta: Como espíritas, quais são nossas guias de ação? Elas são
voltadas para quê? Para construir o quê? Para mudar o quê? Para fazer diferença
aonde e, especialmente, para quem?
O
Espiritismo é um farol, pois ilumina o caminho que se pretende transformador.
Propõe trabalho por igualdade humana no acesso, na permanência e no usufruto da
educação, da cultura, de condições dignas de vida. Propõe o acesso aos direitos
humanos como a saúde mental e física, moradia, alimentação, paz, trabalho e
lazer para todos, indistintamente. Propõe respeito a qualquer identidade sexual
de gênero, de etnia, de forma de ser e estar no mundo. Propõe trabalho por
liberdade de expressão na defesa das próprias ideias. Propõe luta contra
condutas impiedosas de qualquer tipo.
São
campos vastos e variados pedindo braços, mentes, intenções, propósitos,
comprometimento... Para esses campos de aridez humanística, e para essas
prioritárias ações, a caridade é bastante e competente? Em “O Livro dos
Espíritos”, questão 806, Kardec pergunta: “A desigualdade das condições sociais
é uma lei da natureza? Não, é obra do homem e não de Deus”. E sobre nós? Se não
a implantamos diretamente, por certo somos solidários com o perpetuamento da
desigualdade social, se nos mantivermos na ociosidade alienada, na passividade
confortável, na imobilidade egoística.
A
caridade que alivia, momentaneamente, dores que já não podem esperar mais, será
sempre válida, mas também sempre insuficiente, porque fugaz, já que não remove
as raízes profundas dessas dores humanas. Só a justiça social para todos, com
políticas determinadas e consistentes, realiza isso.
Signates
continua nos instigando a agir quando diz que para ações de justiça social
enfrentaremos rupturas e conflitos necessários. Pensar que isso negaria a
fraternidade é compreensão religiosa equivocada. Eu também acredito que, diante
de corações empedernidos, a brandura pouco alcança ou realiza. Para
consciências adormecidas e insensíveis é necessário o choque para o
despertamento. Tendemos, muitas vezes, a pensar que políticas sociais de
justiça dependem apenas de escolhas de órgãos institucionalizados que detêm o
poder de mando numa cidade, estado ou país. Ao assim considerar, erroneamente,
abdicamos de concretizar o nosso melhor em favor da população em tudo
marginalizada ou excluída.
Esterilizamos
o rico entendimento do Espiritismo que crê no homem consciente e que se utiliza
de seu livre-arbítrio para ser agente de felicidade e progresso para si mesmo e
para o grupo social onde está inserido. Espiritismo que acredita que a natureza
e essência humanas são marcadas pela vida em grupo, pela interdependência
recíproca, pela solidariedade comum. Individualismo e egocentrismo traem essa
natureza, apequenam o ser diante de si mesmo, roubam a chance da cooperação, da
mútua aprendizagem, joias do convívio, geradoras do sentimento de pertencimento
a algo maior, pleno do sentido de poder ser com os outros e para os outros.
O
que nos aponta a escolha da justiça social sobre a caridade? A diferença
qualitativa entre os propósitos e os resultados de ambas. Caridade é sempre uma
condescendência, de alguém ou poucas pessoas, uma prodigalidade, uma
complacência, pois move-se por sentimentos de compaixão humana. Ela é
compensatória, mas não libertadora, nem transformadora da realidade, pois não
dá condições ao ser de agir por si mesmo, já que nela o indivíduo ou um pequeno
grupo são objetos e não sujeitos de ações, que por sua vez tendem a ser
esporádicas , transitórias. Já a justiça social é “uma construção moral e
política baseada na igualdade de direitos para todos e na solidariedade
coletiva” (Wikipédia). A vantagem da justiça social sobre a caridade é o
caráter de universalidade de seus princípios, a constância destes no tempo,
além de dar condições de protagonismo na transformação da própria realidade aos
sujeitos que alcança.
A
justiça social é uma responsabilidade compartilhada por todos, vivenciada como
um dever ético de cidadania e não uma concessão de um bem a quem quer que seja.
Para o espírita do presente, mergulhado na realidade social tão saturada de
desigualdades e de injustiças sociais, já não pode bastar a confortadora
caridade. Filiar-se às iniciativas relevantes de fomento de transformações da
realidade, aderir a grupos operantes nesse sentido, somar-se a projetos
voltados à promoção humana, ao acesso e permanência aos direitos humanos,
priorizar seu tempo, criatividade e forças pessoais na intenção da melhoria de
vida dos semelhantes são escolhas em direção à justiça social, que não podem
ser adiadas ao “espírita verdadeiro”, assim designado por Kardec.
Penso
que ser este espírita, hoje, é fazer a Filosofia Espírita sair dos livros para
ser corporificada em ações; fazer os nossos pensamentos espíritas
transformarem-se em sentimentos poderosos, capazes de ganharem vida em atos em
favor da justiça social para todos os nossos semelhantes. Somos todos nós,
espíritas, convidados a, assim, refletir: Fora da contribuição por justiça
social, não há evolução.
[Artigo publicado na coluna Enfoque do
Jornal CCEPA Opinião Nº 320 – Agosto 2023]
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