05 setembro 2025

Allan Kardec e os conceitos de ‘verdade’ - Robson Santos de Oliveira

 

Allan Kardec e os conceitos de ‘verdade’

Robson Santos de Oliveira, Prof. Dr. Pela UFPE, formado      em Letras, Mestrado e Doutorado em Psicologia Cognitiva, estagio pós- doutoral em Linguística. Espírita desde 1980 (NEIL), Recife- PE.

 

Sobre o conceito de ‘verdade’

Ao analisar Kardec, em sua performance existencial, como organizador e referência histórico -conceitual do Espiritismo, é inescapável discutir os conceitos filosóficos de verdade.

A expressão 'verdade', cujo bojo traz discussões semânticas, epistemológicas e filosóficas complexas, também tangencia inevitavelmente para o campo das ciências e das religiões.

O que é a 'verdade' para a Filosofia, para a Ciência e para a Religião? Cada qual desses campos de saberes apresentará concepções que se opõem e que podem, muito raramente, se convergirem num modelo conceitual. Nesse sentido, Allan Kardec e os Espíritos colaboradores, acreditavam nesse escopo, na tentativa de condensar em um corpo doutrinário uma síntese possível como ciência experimental, como filosofia espiritualista e como uma religiosidade decorrente das duas anteriores.

De Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Nietzsche, Husserl, Jean Paul - Sartre, Jung a Foucault, dentre outros, os conceitos de ‘verdade’ se bifurcam em labirintos de complexidade   exigindo epistemes e critérios variados. Importante destacar que Francis Bacon (1992), em seu ensaio Da Verdade, apresentou valiosa abordagem sobre a ‘verdade’ relacionando-a a um método, à experimentação, ao poder e à utilidade. Seja de ponto de vista pragmático ou deflacionário, do desvelamento filosófico - científico grego (alétheia) à confiabilidade místico - religiosa hebraica (emunah) ou ao transcendentalismo budista da realidade espiritual em Quatro Nobres Verdades (arya sathya), o conceito de 'verdade' transita sob várias nuances, por vezes convergentes, por vezes contrárias.

O Espiritismo, pensado enquanto movimento filosófico, também fez uso semântico do termo, em diversos momentos... O conceito de 'verdade' assumiu uma ideia epistemológica tanto filosófico -científica, no seu caráter questionador-observador-experimental, quanto religiosa, no seu aspecto de revelação espiritual. O imbróglio, portanto, fica posto nas nascentes do Espiritismo francês, tal como foi organizado pelos Espíritos, por Kardec e os principais pensadores espíritas da época...

 

Deolindo Amorin e Jaci Régis sobre Allan Kardec

Deolindo Amorin ainda tentou compreender Kardec, num esboço apenas, no seu livrinho ao tratar de Allan Kardec - O homem, a época, o meio, as influências, a missão, sem aprofundamentos necessários; mas o esforço foi importante nos tópicos propostos que, a priori seria a tentativa de ver Allan Kardec no seu ar-de-tempo, atravessado pelo racionalismo positivista e os ideais do Iluminismo, no entanto a leitura do opúsculo não avançou na expectativa pretendida. Deolindo situa Allan Kardec numa feição filosófica, embora o emérito professor de Lyon tenha partido inicialmente do estudo dos fenômenos mediúnicos.  Contudo, ainda assim, as temáticas situadas de Allan Kardec puderam conduzir, a posteriori, discussão sobre questões-problematizadoras como a sacralização de Allan Kardec e dos Espíritos que colaboraram com ele. Embora cite, não aprofundou de que forma o Positivismo, o Evolucionismo, o Ecletismo influenciou o trabalho kardequiano, nem também o fez com o Humanismo, o Racionalismo e o Universalismo.

Jaci Regis (2008) , por sua vez, no seu livro, propôs um Modelo Conceitual da Doutrina Kardecista avançou um pouco além, realizando ponderações sobre o próprio Allan Kardec, destacando como as duas obras primeiras (O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns) seguiram uma determinada linha de pensamento, sendo modificada para uma perspectiva mais religiosa em torno dos cânones bíblicos - cristãos nas três últimas obras [1](O Evangelho Segundo o Espiritismo; O Céu e o Inferno; A Gênese, os Milagres e as Predições). A sua proposição foi progressista no sentido de "caminhar aberta ao novo, sem perder as raízes do pensamento de Allan Kardec". Regis teve a coragem de pontuar como Kardec que abriu campo para diretrizes outras diferentes daquelas iniciais, de um caráter mais universalista para uma visão cristã, ao defender e utilizar a expressão de “Espiritismo cristão”; tinha prometido uma revolução com novas palavras para um modelo novo de percepção do Universo e de nós mesmos, no entanto, adesiva o Espiritismo ao viés cristão, com o cronograma das três revelações divinas (Judaísmo-Cristianismo-Espiritismo) e, assim, realizando uma nova versão e interpretação dos cânones principais do Antigo Testamento (Gênesis, Moisés) e do Novo Testamento, (Evangelhos, Jesus). Essa associação do Espiritismo ao Cristianismo torna-se uma espécie de atualização do catolicismo e, porque não dizer, do modelo cristão de modo geral (autoria mediúnica de católicos renomados, interpretação dos Evangelhos, nova explicação de céu, inferno, purgatório, anjos, demônios).

Importa destacar dois autores, numa visão crítico - progressista que publicaram nos últimos anos livros sobre Allan Kardec: Elias Moraes (2020) com o Contextualizando Kardec: do século XIX ao XXI e Dora Incontri (2023) com Kardec para o século 21.

 

De volta à ideia de ‘verdade’ associada ao Espiritismo nas obras básicas

Allan Kardec traz para a Introdução de O Livro dos Espíritos várias vezes o termo ‘verdade’, mas é nos Prolegômenos que faço os destaques. Primeiramente associa o conteúdo da obra ao “repositório do ensino dos Espíritos” admitindo que “foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional (...)”. Para testificar isso, traz uma síntese de várias mensagens assinadas por célebres Espíritos que tiveram seus nomes na história humana, destacando que:

(...) aqui estaremos para te amparar e vem próximo o tempo em que a Verdade brilhará de todos os lados.” [destaque meu]

além de introduzir o nome de Jesus, como uma referência, que será pinçada ao longo do livro e mais precisamente se evidenciará na resposta à questão:

Mas, todos os que tiverem em vista o grande princípio de Jesus, se confundirão num só sentimento: o do amor do bem e se unirão por um laço fraterno, que prenderá o mundo inteiro.” [destaque meu]

A identificação do Espiritismo com a Verdade (aqui entendia no seu amplo aspecto de realidade das coisas ou conhecimento do que seja o real) não somente ocorre no campo semântico -epistemológico, mas também personalizado por uma entidade que assina por O Espírito de Verdade.

Ao longo de toda obra o termo ‘verdade’ vai ser adjetivado por ‘verdades incontestáveis’ ou ‘grandes verdades’. Especificamente é na questão 628 que Allan Kardec trata da ‘verdade’:

628. Por que a verdade não foi sempre posta ao alcance de toda gente?

Importa que cada coisa venha a seu tempo. A verdade é como a luz: o homem precisa habituar-se a ela, pouco a pouco; do contrário, fica deslumbrado.

E os Espíritos nesta mesma resposta tratarão do termo ‘algumas verdades’ e, novamente, de ‘grandes verdades’.

 

Em O Livros dos Médiuns, Allan Kardec traz o vocábulo ‘verdades’, tornando-se a famosa expressão tantas vezes repetida em vários exemplos e reafirmações, sem muito aprofundamento, aqui podendo significar ‘exemplos coerentes sobre algo’, ‘mostras condizentes com o que é estudado’ no sentido de evidências reais:

Melhor é repelir dez verdades do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.” (cap. XX) [destaque meu]

 

Em O Evangelho Segundo o Espiritismo no tópico II da Introdução ao tratar sobre o Controle Universal do Ensino dos Espíritos, Allan Kardec admite que

Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta.”

Kardec amplia essa concepção para os Espíritos que se comunicam ao comentar a mensagem:

Sabe-se que os Espíritos, em virtude da diferença entre as suas capacidades, longe se acham de estar, individualmente considerados, na posse de toda a verdade[grifo meu]

E que, por isso mesmo, diante das mensagens mediúnicas, sem análise prévia,

(...) imprudente fora aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas. [grifo meu]

É nesta obra kardequiana que, mais evidentemente se apresenta o Espiritismo já assumindo sua feição cristã, pelo próprio título e sua finalidade, que foi a de interpretar diversas passagens atribuídas a Jesus. Allan Kardec ratifica várias vezes ao longo do livro essa visão do Espiritismo cristão, o que provocará problemas a posteriori:

“O Espiritismo veio completar, nesse ponto, como em vários outros, o ensino do Cristo, fazendo-o quando os homens já se mostram maduros bastante para apreender a verdade.” cap. II (Meu Reino não é deste mundo) [grifo meu]

O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside ao seu advento o Espírito de Verdade.” cap. VI (O Cristo Consolador) [grifo meu]

Allan Kardec ainda reforça essa ideia com uma mensagem assinada pelo O Espírito de Verdade, neste mesmo capítulo VI, sob o título O Advento do Espírito de Verdade:

No Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram” [grifos meus]

É o capítulo VI (O Cristo Consolador) central para esta tese do Espiritismo como o Consolador Prometido por Jesus, apresentada por Allan Kardec e os Espíritos que atuavam junto com ele naquele momento. Leia-se: “Assim, o Espiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento das coisas (...)”, ou seja, O Espiritismo é apresentado como o Consolador Prometido (por Jesus) que por sua vez é o Espírito de Verdade, o qual assina mensagens como se fora uma persona e traz a ‘verdade’ como conhecimento das coisas... um dos pontos nevrálgicos do Espiritismo, conforme Jaci Regis (2008).

No cap. XV (Fora da Caridade não há salvação), Allan Kardec vai trazer a classificação de dois tipos de verdades (como conhecimento da realidade espiritual ou conhecimento do que seja o real): Os Espíritos mais elevados, ditos superiores, seriam os detentores da verdade absoluta e a humanidade (Espíritos reencarnados) poderia ter acesso a uma verdade relativa. Aqui entendemos ‘verdade’ como nível de conhecimento mais amplo (absoluto) e mais restrito, ou menor (relativo). E Kardec ainda admite que não é pretensão do Espiritismo “ensinar ainda toda a verdade

Já no cap. XVIII (Muitos os chamados, poucos os escolhidos), Allan Kardec afirma que “São eternas as palavras de Jesus, porque são a verdade.”

No cap. XX (Fora da caridade não há salvação), Allan Kardec faz uma crítica à fé cega (“Cada religião pretende ter a posse exclusiva da verdade”) e utiliza o termo ‘verdade’ como comprovação, verificação, análise crítica:somente a fé que se baseia na verdade garante o futuro, porque nada tem a temer do progresso (...)”. É também neste capítulo que Allan Kardec traz a seguinte adjetivação: verdades espirituais.

No cap. XXII (Haverá falsos cristos e falsos profetas), Allan Kardec associa o termo ‘verdade’ à luz como informação e conhecimento revelado, e seu oposto (ignorância, desconhecimento) é relacionado às trevas.

No cap. XXIII (Estranha moral), Allan Kardec adjetiva o termo ‘verdade’ à consolação ao considerar que o Espiritismo transmite uma “verdade consoladora”.

No cap. XXIV (Não ponhais a candeia embaixo do alqueire), Allan Kardec apresenta vários aspectos do termo ‘verdade’:

· Controlado pela Providência Divina como revelações escalares

· Os discípulos de Jesus por serem mais adiantados moral e intelectualmente tinham acesso a conhecimentos de verdades mais abstratas

Ao longo de O Evangelho Segundo o Espiritismo são encontradas as expressões:

· ‘verdade absoluta’

· ‘verdade de ordem mais elevada’

· ‘grandes verdades’

· ‘certas verdades’

· ‘uma verdade mais profunda’

· ‘todas as verdades’

· ‘verdades’

· ‘verdade absoluta’

· ‘verdade relativa’

· ‘toda a verdade

· ‘verdades morais’

· ‘verdade fundamental’

· ‘verdades espirituais’

· ‘verdade consoladora’

 

Em O Céu e o Inferno, encontramos estas expressões:

· ‘a verdade absoluta’

· ‘verdades absolutas’

· ‘a verdade’

· ‘as verdades’

· ‘O Espírito de Verdade’

· ‘as verdades sobrenaturais’

· ‘algumas verdades’

· ‘poucas verdades’

· ‘a verdade sabiamente velada aos homens’

· ‘verdades espíritas’

· ‘conhecimento da verdade’

· ‘grandes verdades’

· ‘verdade imponente’

 

Por fim, na última obra de Allan Kardec, A Gênese, o termo ‘verdade’ está relacionado a um caráter de revelação, de desvelamento, de esclarecimento do que antes era desconhecido e agora passa a ser de conhecimento. Nesse sentido, Allan Kardec vai tecendo uma rede semântica em torno do vocábulo e relacionando-o ao Espiritismo como sendo mobilizador de uma verdade integral ou verdades novas, mas ao mesmo tempo, Kardec defende que o Espiritismo “não foi dado integralmente” porque sendo coletivo, e não individual, está disperso em vários lugares do mundo. Aqui Allan Kardec traz aquela memorável advertência de que o Espiritismo, por sua vez, também não consegue dar conta de tudo, de toda a ‘verdade’:

“Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.” (Caráter da revelação espírita, item 55) [destaque meu]

Encontramos, assim, estas expressões do vocábulo ‘verdade’ na obra A Gênese:

· ‘verdade integral’

· ‘verdades novas’

· ‘a verdade’

· ‘certas verdades (científicas ou morais, físicas ou metafísicas)’

· ‘verdades científicas’

· ‘toda a verdade’

· ‘eterna verdade’

· ‘O Espírito de verdade’

· ‘verdades novas’

· ‘verdades práticas’

· ‘verdade absoluta’

· ‘sublimes verdades’

· ‘verdade universal’

· ‘verdade axiomática’

· ‘verdade sagrada’

· ‘grandes verdades morais’

· ‘verdades do Cristianismo’

· ‘luz da verdade’

· ‘eterna verdade’

· ‘rigorosa verdade’

· ‘verdade palpável’

· ‘verdades eternas’

 

 

Sobre tomar Kardec ou sua obra como fonte ou referência de ‘verdade’.

Diante do exposto sobre os diversos conceitos de ‘verdade’ associados ao Espiritismo, ora legitimando-se que este representa a Verdade (conhecimento da realidade, conhecimento absoluto, conhecimento espiritual etc.) ora que não, posto que nem os seres humanos e nem todos os Espíritos conhecem tudo (O Evangelho Segundo o Espiritismo-Introdução/Controle Universal do Ensino dos Espíritos), faz-se importante reconhecer aqui mais um imbróglio, assim como assinalou Jaci Regis(2008) quando apontou que Kardec colocou o Espiritismo ‘dentro’ do Cristianismo, de certa forma.

Quem se identifica com uma perspectiva religiosa do Espiritismo encontrará razões de sobra para colimar a crença de Espiritismo sinônimo de ‘verdade’ (com todas as adjetivações divinas, supra-humanas) nas obras de Allan Kardec e, por uma tênue linha, o conceito abstrato de ‘verdade’ passa a ser personalizado com O Espírito de Verdade e, ainda justificado, na interpretação evangélica do Consolador Prometido (João 14:16,17):

“E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós.” [Grifos meus]

É, no entanto, no sentido progressista proposto por Jaci Régis (2008) “(...) a partir de uma análise crítica e releitura da obra de Allan Kardec” que poderemos admitir ser Allan Kardec e sua obra fonte e referência do Espiritismo, não da ‘verdade’ (aqui entendida como o grande desconhecido, todo o emaranhado de informações do Universo, ou a realidade última sobre todas as coisas). São nas obras kardequianas, mescladas por anotações suas juntamente ao pensamento dos Espíritos, que encontramos as matrizes do Espiritismo em núcleos ou epistemes básicas, sobre a ideia de Deus, de imortalidade da alma, de mediunidade, de pluralidade das existências corpóreas, dentre outras.

Em Allan Kardec, pois há um esclarecimento da realidade espiritual, em particular, no que diz respeito à imortalidade do ser, através da comunicação das pessoas através de médiuns, além de ratificar a pluralidade das existências corporais (reencarnação). Situado no século XIX, em meio ao Positivismo científico, ao Iluminismo filosófico procurou apresentar esse paradigma atendendo às exigências do seu tempo, embora tenha assumido mais atitude filosófica, como bem pontou Deolindo Amorim (2010, p. 18); Matheus Laureano e Wilson Garcia (2023, p. 86) vão identifica-lo como um filósofo educador e Pimentel (2024) admitirá que Allan Kardec “desenvolveu   uma   filosofia   racional,   ou   seja,   aberta   a   novas hipóteses  e  teorias,  contrapondo-se  ao  hermetismo  característico  de  muitos sistemas filosóficos”. Richet, Albert de Rochas, Crookes, Aksakof, Bozzano, Lombroso, dentre outros avançaram e se identificaram com uma ação mais científico-metodológica-experimental, mas Allan Kardec desenvolveu uma abordagem mais filosófica, embora O Livro dos Médiuns seja um condensado compêndio de conceituação, classificação, exemplificação e orientação prática da mediunidade organizado por ele.

Ao organizar as cinco obras básicas, e também as outras complementares (opúsculos), bem como a Revista Espírita e suas anotações que, post-mortem, se tornaram Obras Póstumas, além de dirigir a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Allan Kardec é referência fundamental do Espiritismo. Há pontos aqui e ali que vão refletir o ser humano de sua época (os horizontes culturais científico, filosófico e religioso, dos quais não conseguirá isentar-se) e, não somente dele, mas também de muitos dos Espíritos que colaboraram com aquele projeto inicial (a questão das raças, a geração espontânea, a vida habitada nos planetas do sistema solar etc.). Nem por isso, seu nome poderá ser desqualificado como referência do Espiritismo em suas bases estabelecidas.

Se tomarmos como exemplo a figura de Freud, o pai da Psicanálise, e o contexto cultural em como a mulher era considerada e sobre as teorias sobre a histeria, iremos dizer que Freud não é mais referência para a Psicanálise que ele criou e que está ultrapassado? O mesmo se dirá de Marx e tantos outros que construíram teorias e modelos conceituais. Por que com Allan Kardec teria que ser diferente, desqualificando-o?

Allan Kardec, junto com os Espíritos que trabalharam com ele, apresentou de forma paradigmática uma maneira de olhar-se, olhar o outro e a Deus, sustentada numa base filosófica espiritualista: nós somos Espíritos, pré-existentes a esta existência e sobrevivente a ela, tendo uma Inteligência Causal de todas as coisas.

Finalizando estas anotações, temos que sobre paradigmas como ‘verdades’, Jung (1997, p.252, §577) dirá que “nada é mais vulnerável e passageiro do que as teorias científicas que sempre são meros instrumentos e nunca verdades eternas.” [grifos meus] e Thomas Khun (1998, p. 13) dirá que os “paradigmas” são “(...) as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” [grifos meus]. Tais referências sobre ‘verdades’ e ‘paradigmas’ nos servem para compreendermos a relatividade dos modelos que utilizamos e construímos para compreender a realidade. É nessa perspectiva que trago o respeito a Allan Kardec, como referência basilar do Espiritismo, com toda a grandeza e limitações que o caracterizavam, para nem sacralizá-lo e nem invisibilizá-lo. A referência a Allan Kardec, portanto, não é de que ele não possa ser criticamente analisado, mas sim respeitado, não demolido.

Elias Moraes (2020) no seu livro Contextualizando Kardec: do século para o XXI afirmará que “ao longo de toda a sua obra ele [Allan Kardec] deixa claro que não estava apresentando uma verdade final, mas lançando as bases de uma nova forma de encarar a vida humana na Terra” [grifos meus]. O autor dedicou, por sua vez, o capítulo 5º do seu livro para discutir ‘Da verdade absoluta ao sentido de pós - verdade’, destacando de seu ponto de vista como Allan Kardec concebeu a ‘verdade’. Dora Incontri (2023), por sua vez, também dedicará o capítulo 9º de seu livro Kardec para o século 21 para responder à pergunta ‘O Espiritismo explica a totalidade do real?’. Ambos trazem, numa perspectiva crítica, uma ressignificação sobre o Kardec mais humano, não mitificado, lidando com suas próprias limitações e concepções sobre a ‘verdade’ e o ‘real’.

 

Por sua vez, Mario Bunge, em seu livro tratando sobre Teoria e Realidade dirá o seguinte:

Pois, de fato, a verdade não é o desvelamento do que estava oculto como os pré-socráticos e Heidegger pretenderam: a verdade é feita e não encontrada, e diagnosticar a verdade é tão difícil como diagnosticar a virtude.” (Bunge, 1974, p. 134).

Assim, cabe-nos utilizar sempre Allan Kardec ou sua obra como fonte ou referência das bases do Espiritismo, não como ‘verdades absolutas’, e considerando sua contínua atualização.

Robson Santos de Oliveira

Caruaru, Pernambuco, agosto de 2025

 

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Referências:

AMORIM, Deolindo. Allan Kardec (O homem; a época; o meio; as influências; a missão). Juiz de Fora: Instituto Maria; Instituto de Cultura Espírita de Juiz de Fora.

BACON, Francis. Ensaios. Tradução de Álvaro Ribeiro. 3ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1992.

BUNGE, Mario. Teoria e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, trad. Guillon Ribeiro. 54ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 1981.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, trad. Guillon Ribeiro. 80ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 2011.

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, trad. Guillon Ribeiro, 86ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 2011.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, trad. Guillon Ribeiro. 24ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 1977.

KARDEC, Allan. A Gênese, trad. Guillon Ribeiro. 26ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 2004.

KARDEC, Allan. Obras Póstumas, 26ª            ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 1993.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.

INCONTRI, Dora. Kardec para o século 21. São Paulo: Comenius, 2023

LAUREANO, Matheus; GARCIA, Wilson. Allan Kardec: fundador do Espiritismo. CEPA, 2023.

MORAES, Elias. Contextualizando Kardec: do século XIX ao XXI. Goiânia: Aephus, 2020.

PIMENTEL, Marcelo Gulão. Allan Kardec: vidas, ideias, obras e influências. Horizonte v. 22, n.67, e226702, jan./abr.2024.

REGIS, Jaci. Doutrina Kardecista (modelo conceitual: reescrevendo o modelo espírita). São Paulo: ICKS, 2008.



[1] Esta divisão das obras pode ser contestada porque desde O Livro dos Espíritos e O Livros dos Médiuns, termos que remetem ao Cristianismo associado ao Espiritismo se fazem presentes: Jesus, cristão, nomes relevantes pertencentes ao Catolicismo assinando as mensagens, passagens evangélicas etc. Talvez o que Jaci Regis tenha querido propor é a temática mais central do título e subtítulo das três últimas obras.

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