Allan
Kardec e os conceitos de ‘verdade’
Sobre o conceito
de ‘verdade’
Ao analisar
Kardec, em sua performance existencial, como organizador e referência
histórico -conceitual do Espiritismo, é inescapável discutir os conceitos
filosóficos de verdade.
A expressão
'verdade', cujo bojo traz discussões semânticas, epistemológicas e filosóficas
complexas, também tangencia inevitavelmente para o campo das ciências e das
religiões.
O que é a
'verdade' para a Filosofia, para a Ciência e para a Religião? Cada qual desses
campos de saberes apresentará concepções que se opõem e que podem, muito
raramente, se convergirem num modelo conceitual. Nesse sentido, Allan Kardec e
os Espíritos colaboradores, acreditavam nesse escopo, na tentativa de condensar
em um corpo doutrinário uma síntese possível como ciência experimental, como
filosofia espiritualista e como uma religiosidade decorrente das duas
anteriores.
De Aristóteles,
Tomás de Aquino, Descartes, Nietzsche, Husserl, Jean Paul - Sartre, Jung a
Foucault, dentre outros, os conceitos de ‘verdade’ se bifurcam em labirintos de
complexidade exigindo epistemes e
critérios variados. Importante destacar que Francis Bacon (1992), em seu ensaio
Da Verdade, apresentou valiosa abordagem sobre a ‘verdade’
relacionando-a a um método, à experimentação, ao poder e à utilidade. Seja de
ponto de vista pragmático ou deflacionário, do desvelamento
filosófico - científico grego (alétheia) à confiabilidade
místico - religiosa hebraica (emunah) ou ao transcendentalismo budista da
realidade espiritual em Quatro Nobres Verdades (arya sathya),
o conceito de 'verdade' transita sob várias nuances, por vezes convergentes,
por vezes contrárias.
O Espiritismo,
pensado enquanto movimento filosófico, também fez uso semântico do termo, em
diversos momentos... O conceito de 'verdade' assumiu uma ideia epistemológica
tanto filosófico -científica, no seu caráter questionador-observador-experimental,
quanto religiosa, no seu aspecto de revelação espiritual. O
imbróglio, portanto, fica posto nas nascentes do Espiritismo francês, tal como
foi organizado pelos Espíritos, por Kardec e os principais pensadores espíritas
da época...
Deolindo Amorin e Jaci Régis
sobre Allan Kardec
Deolindo Amorin
ainda tentou compreender Kardec, num esboço apenas, no seu livrinho ao tratar
de Allan Kardec - O homem, a época, o meio, as influências, a missão,
sem aprofundamentos necessários; mas o esforço foi importante nos tópicos
propostos que, a priori seria a tentativa de ver Allan Kardec no seu
ar-de-tempo, atravessado pelo racionalismo positivista e os ideais do
Iluminismo, no entanto a leitura do opúsculo não avançou na expectativa
pretendida. Deolindo situa Allan Kardec numa feição filosófica, embora o
emérito professor de Lyon tenha partido inicialmente do estudo dos fenômenos
mediúnicos. Contudo, ainda assim, as
temáticas situadas de Allan Kardec puderam conduzir, a posteriori, discussão
sobre questões-problematizadoras como a sacralização de Allan Kardec e dos
Espíritos que colaboraram com ele. Embora cite, não aprofundou de que forma o Positivismo,
o Evolucionismo, o Ecletismo influenciou o trabalho kardequiano,
nem também o fez com o Humanismo, o Racionalismo e o Universalismo.
Jaci Regis
(2008) , por sua vez, no seu livro, propôs um Modelo Conceitual da Doutrina
Kardecista avançou um pouco além, realizando ponderações sobre o próprio
Allan Kardec, destacando como as duas obras primeiras (O Livro dos Espíritos
e O Livro dos Médiuns) seguiram uma determinada linha de pensamento, sendo
modificada para uma perspectiva mais religiosa em torno dos cânones
bíblicos - cristãos nas três últimas obras [1](O
Evangelho Segundo o Espiritismo; O Céu e o Inferno; A Gênese, os
Milagres e as Predições). A sua proposição foi progressista no sentido de
"caminhar aberta ao novo, sem perder as raízes do pensamento de Allan
Kardec". Regis teve a coragem de pontuar como Kardec que abriu campo para
diretrizes outras diferentes daquelas iniciais, de um caráter mais
universalista para uma visão cristã, ao defender e utilizar a expressão de
“Espiritismo cristão”; tinha prometido uma revolução com novas palavras para um
modelo novo de percepção do Universo e de nós mesmos, no entanto, adesiva o
Espiritismo ao viés cristão, com o cronograma das três revelações divinas
(Judaísmo-Cristianismo-Espiritismo) e, assim, realizando uma nova versão e
interpretação dos cânones principais do Antigo Testamento (Gênesis, Moisés) e
do Novo Testamento, (Evangelhos, Jesus). Essa associação do Espiritismo ao
Cristianismo torna-se uma espécie de atualização do catolicismo e, porque não
dizer, do modelo cristão de modo geral (autoria mediúnica de católicos
renomados, interpretação dos Evangelhos, nova explicação de céu, inferno,
purgatório, anjos, demônios).
Importa destacar
dois autores, numa visão crítico - progressista que publicaram nos últimos anos
livros sobre Allan Kardec: Elias Moraes (2020) com o Contextualizando
Kardec: do século XIX ao XXI e Dora Incontri (2023) com Kardec para o
século 21.
De volta à ideia de ‘verdade’
associada ao Espiritismo nas obras básicas
Allan Kardec
traz para a Introdução de O Livro dos Espíritos várias vezes o
termo ‘verdade’, mas é nos Prolegômenos que faço os destaques.
Primeiramente associa o conteúdo da obra ao “repositório do ensino dos
Espíritos” admitindo que “foi escrito por ordem e mediante ditado de Espíritos
superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional (...)”.
Para testificar isso, traz uma síntese de várias mensagens assinadas por
célebres Espíritos que tiveram seus nomes na história humana, destacando que:
“(...) aqui
estaremos para te amparar e vem próximo o tempo em que a Verdade
brilhará de todos os lados.” [destaque meu]
além de
introduzir o nome de Jesus, como uma referência, que será pinçada ao longo do
livro e mais precisamente se evidenciará na resposta à questão:
“Mas, todos
os que tiverem em vista o grande princípio de Jesus, se
confundirão num só sentimento: o do amor do bem e se unirão por um laço
fraterno, que prenderá o mundo inteiro.” [destaque meu]
A identificação
do Espiritismo com a Verdade (aqui entendia no seu amplo aspecto de realidade
das coisas ou conhecimento do que seja o real) não somente ocorre no campo
semântico -epistemológico, mas também personalizado por uma entidade que assina
por O Espírito de Verdade.
Ao longo de toda
obra o termo ‘verdade’ vai ser adjetivado por ‘verdades incontestáveis’ ou
‘grandes verdades’. Especificamente é na questão 628 que Allan Kardec trata da
‘verdade’:
628. Por que a verdade não foi
sempre posta ao alcance de toda gente?
Importa que cada coisa venha a
seu tempo. A verdade é como a luz: o homem precisa habituar-se a
ela, pouco a pouco; do contrário, fica deslumbrado.
E os Espíritos
nesta mesma resposta tratarão do termo ‘algumas verdades’ e, novamente, de
‘grandes verdades’.
Em O Livros
dos Médiuns, Allan Kardec traz o vocábulo ‘verdades’, tornando-se a famosa
expressão tantas vezes repetida em vários exemplos e reafirmações, sem muito
aprofundamento, aqui podendo significar ‘exemplos coerentes sobre algo’,
‘mostras condizentes com o que é estudado’ no sentido de evidências reais:
“Melhor é repelir dez verdades
do que admitir uma única falsidade, uma só teoria errônea.” (cap. XX)
[destaque meu]
Em O Evangelho
Segundo o Espiritismo no tópico II da Introdução ao tratar
sobre o Controle Universal do Ensino dos Espíritos, Allan Kardec admite
que
“Ora, ninguém, neste mundo,
poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade
absoluta.”
Kardec amplia
essa concepção para os Espíritos que se comunicam ao comentar a mensagem:
“Sabe-se que os Espíritos, em
virtude da diferença entre as suas capacidades, longe se acham de estar,
individualmente considerados, na posse de toda a verdade” [grifo meu]
E que, por isso
mesmo, diante das mensagens mediúnicas, sem análise prévia,
“(...) imprudente fora
aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas.” [grifo meu]
É nesta obra
kardequiana que, mais evidentemente se apresenta o Espiritismo já assumindo sua
feição cristã, pelo próprio título e sua finalidade, que foi a de interpretar
diversas passagens atribuídas a Jesus. Allan Kardec ratifica várias vezes ao
longo do livro essa visão do Espiritismo cristão, o que provocará
problemas a posteriori:
“O Espiritismo veio completar,
nesse ponto, como em vários outros, o ensino do Cristo, fazendo-o quando os
homens já se mostram maduros bastante para apreender a verdade.” cap. II (Meu Reino não é deste
mundo) [grifo meu]
“O Espiritismo vem, na época
predita, cumprir a promessa do Cristo: preside ao seu advento o Espírito
de Verdade.” cap. VI (O Cristo Consolador) [grifo meu]
Allan Kardec
ainda reforça essa ideia com uma mensagem assinada pelo O Espírito de
Verdade, neste mesmo capítulo VI, sob o título O Advento do Espírito de
Verdade:
“No Cristianismo encontram-se
todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se
enraizaram” [grifos meus]
É o capítulo VI
(O Cristo Consolador) central para esta tese do Espiritismo como o
Consolador Prometido por Jesus, apresentada por Allan Kardec e os Espíritos que
atuavam junto com ele naquele momento. Leia-se: “Assim, o Espiritismo
realiza o que Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento das
coisas (...)”, ou seja, O Espiritismo é apresentado como o
Consolador Prometido (por Jesus) que por sua vez é o Espírito de Verdade, o
qual assina mensagens como se fora uma persona e traz a ‘verdade’ como
conhecimento das coisas... um dos pontos nevrálgicos do Espiritismo, conforme
Jaci Regis (2008).
No cap. XV (Fora
da Caridade não há salvação), Allan Kardec vai trazer a classificação de
dois tipos de verdades (como conhecimento da realidade espiritual ou
conhecimento do que seja o real): Os Espíritos mais elevados, ditos superiores,
seriam os detentores da verdade absoluta e a humanidade
(Espíritos reencarnados) poderia ter acesso a uma verdade relativa.
Aqui entendemos ‘verdade’ como nível de conhecimento mais amplo (absoluto) e
mais restrito, ou menor (relativo). E Kardec ainda admite que não é pretensão
do Espiritismo “ensinar ainda toda a verdade”
Já no cap. XVIII
(Muitos os chamados, poucos os escolhidos), Allan Kardec afirma que “São
eternas as palavras de Jesus, porque são a verdade.”
No cap. XX (Fora
da caridade não há salvação), Allan Kardec faz uma crítica à fé cega (“Cada
religião pretende ter a posse exclusiva da verdade”) e
utiliza o termo ‘verdade’ como comprovação, verificação, análise crítica:
“somente
a fé que se baseia na verdade garante o futuro, porque nada tem a
temer do progresso (...)”. É também neste capítulo que Allan Kardec traz a
seguinte adjetivação: verdades espirituais.
No cap. XXII (Haverá
falsos cristos e falsos profetas), Allan Kardec associa o termo ‘verdade’ à
luz como informação e conhecimento revelado, e seu oposto (ignorância,
desconhecimento) é relacionado às trevas.
No cap. XXIII (Estranha
moral), Allan Kardec adjetiva o termo ‘verdade’ à consolação ao considerar
que o Espiritismo transmite uma “verdade consoladora”.
No cap. XXIV (Não
ponhais a candeia embaixo do alqueire), Allan Kardec apresenta vários
aspectos do termo ‘verdade’:
· Controlado pela
Providência Divina como revelações escalares
· Os discípulos de
Jesus por serem mais adiantados moral e intelectualmente tinham acesso a
conhecimentos de verdades mais abstratas
Ao longo de O
Evangelho Segundo o Espiritismo são encontradas as expressões:
· ‘verdade
absoluta’
· ‘verdade de
ordem mais elevada’
· ‘grandes
verdades’
· ‘certas
verdades’
· ‘uma verdade
mais profunda’
· ‘todas as
verdades’
· ‘verdades’
· ‘verdade
absoluta’
· ‘verdade relativa’
· ‘toda a verdade
· ‘verdades
morais’
· ‘verdade
fundamental’
· ‘verdades
espirituais’
· ‘verdade
consoladora’
Em O Céu e o
Inferno, encontramos estas expressões:
· ‘a verdade
absoluta’
· ‘verdades
absolutas’
· ‘a verdade’
· ‘as verdades’
· ‘O Espírito de
Verdade’
· ‘as verdades
sobrenaturais’
· ‘algumas
verdades’
· ‘poucas
verdades’
· ‘a verdade
sabiamente velada aos homens’
· ‘verdades
espíritas’
· ‘conhecimento da
verdade’
· ‘grandes
verdades’
· ‘verdade
imponente’
Por fim, na
última obra de Allan Kardec, A Gênese, o termo ‘verdade’ está
relacionado a um caráter de revelação, de desvelamento, de esclarecimento do
que antes era desconhecido e agora passa a ser de conhecimento. Nesse sentido,
Allan Kardec vai tecendo uma rede semântica em torno do vocábulo e
relacionando-o ao Espiritismo como sendo mobilizador de uma verdade integral
ou verdades novas, mas ao mesmo tempo, Kardec defende que o Espiritismo “não
foi dado integralmente” porque sendo coletivo, e não individual, está disperso
em vários lugares do mundo. Aqui Allan Kardec traz aquela memorável advertência
de que o Espiritismo, por sua vez, também não consegue dar conta de tudo, de
toda a ‘verdade’:
“Caminhando de par com o
progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas
lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria
nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.” (Caráter da revelação espírita,
item 55) [destaque meu]
Encontramos,
assim, estas expressões do vocábulo ‘verdade’ na obra A Gênese:
· ‘verdade
integral’
· ‘verdades novas’
· ‘a verdade’
· ‘certas verdades
(científicas ou morais, físicas ou metafísicas)’
· ‘verdades
científicas’
· ‘toda a verdade’
· ‘eterna verdade’
· ‘O Espírito de
verdade’
· ‘verdades novas’
· ‘verdades
práticas’
· ‘verdade
absoluta’
· ‘sublimes
verdades’
· ‘verdade
universal’
· ‘verdade
axiomática’
· ‘verdade
sagrada’
· ‘grandes
verdades morais’
· ‘verdades do
Cristianismo’
· ‘luz da verdade’
· ‘eterna verdade’
· ‘rigorosa
verdade’
· ‘verdade
palpável’
· ‘verdades
eternas’
Sobre tomar Kardec ou sua obra
como fonte ou referência de ‘verdade’.
Diante do
exposto sobre os diversos conceitos de ‘verdade’ associados ao Espiritismo, ora
legitimando-se que este representa a Verdade (conhecimento da realidade,
conhecimento absoluto, conhecimento espiritual etc.) ora que não, posto que nem
os seres humanos e nem todos os Espíritos conhecem tudo (O Evangelho
Segundo o Espiritismo-Introdução/Controle Universal do Ensino dos Espíritos),
faz-se importante reconhecer aqui mais um imbróglio, assim como assinalou Jaci
Regis(2008) quando apontou que Kardec colocou o Espiritismo ‘dentro’ do
Cristianismo, de certa forma.
Quem se
identifica com uma perspectiva religiosa do Espiritismo encontrará razões de
sobra para colimar a crença de Espiritismo sinônimo de ‘verdade’ (com todas as
adjetivações divinas, supra-humanas) nas obras de Allan Kardec e, por uma tênue
linha, o conceito abstrato de ‘verdade’ passa a ser personalizado com O
Espírito de Verdade e, ainda justificado, na interpretação evangélica do Consolador
Prometido (João 14:16,17):
“E eu rogarei ao Pai, e ele vos
dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; O Espírito de
verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece;
mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós.” [Grifos meus]
É, no entanto,
no sentido progressista proposto por Jaci Régis (2008) “(...) a partir de
uma análise crítica e releitura da obra de Allan Kardec” que poderemos
admitir ser Allan Kardec e sua obra fonte e referência do Espiritismo, não da
‘verdade’ (aqui entendida como o grande desconhecido, todo o emaranhado de
informações do Universo, ou a realidade última sobre todas as coisas). São nas
obras kardequianas, mescladas por anotações suas juntamente ao pensamento dos
Espíritos, que encontramos as matrizes do Espiritismo em núcleos ou epistemes básicas,
sobre a ideia de Deus, de imortalidade da alma, de mediunidade, de pluralidade
das existências corpóreas, dentre outras.
Em Allan Kardec,
pois há um esclarecimento da realidade espiritual, em particular, no que diz
respeito à imortalidade do ser, através da comunicação das pessoas através de
médiuns, além de ratificar a pluralidade das existências corporais
(reencarnação). Situado no século XIX, em meio ao Positivismo científico, ao
Iluminismo filosófico procurou apresentar esse paradigma atendendo às
exigências do seu tempo, embora tenha assumido mais atitude filosófica,
como bem pontou Deolindo Amorim (2010, p. 18); Matheus Laureano e Wilson Garcia
(2023, p. 86) vão identifica-lo como um filósofo educador e Pimentel
(2024) admitirá que Allan Kardec “desenvolveu uma
filosofia racional, ou seja, aberta a
novas hipóteses e teorias, contrapondo-se ao
hermetismo característico de
muitos sistemas filosóficos”. Richet, Albert de Rochas, Crookes,
Aksakof, Bozzano, Lombroso, dentre outros avançaram e se identificaram com uma
ação mais científico-metodológica-experimental, mas Allan Kardec desenvolveu
uma abordagem mais filosófica, embora O Livro dos Médiuns seja um
condensado compêndio de conceituação, classificação, exemplificação e
orientação prática da mediunidade organizado por ele.
Ao organizar as
cinco obras básicas, e também as outras complementares (opúsculos), bem como a Revista
Espírita e suas anotações que, post-mortem, se tornaram Obras
Póstumas, além de dirigir a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Allan
Kardec é referência fundamental do Espiritismo. Há pontos aqui e ali que vão
refletir o ser humano de sua época (os horizontes culturais científico,
filosófico e religioso, dos quais não conseguirá isentar-se) e, não somente
dele, mas também de muitos dos Espíritos que colaboraram com aquele projeto
inicial (a questão das raças, a geração espontânea, a vida habitada nos
planetas do sistema solar etc.). Nem por isso, seu nome poderá ser
desqualificado como referência do Espiritismo em suas bases estabelecidas.
Se tomarmos como
exemplo a figura de Freud, o pai da Psicanálise, e o contexto cultural em como
a mulher era considerada e sobre as teorias sobre a histeria, iremos dizer que
Freud não é mais referência para a Psicanálise que ele criou e que está
ultrapassado? O mesmo se dirá de Marx e tantos outros que construíram teorias e
modelos conceituais. Por que com Allan Kardec teria que ser diferente,
desqualificando-o?
Allan Kardec,
junto com os Espíritos que trabalharam com ele, apresentou de forma
paradigmática uma maneira de olhar-se, olhar o outro e a Deus, sustentada numa
base filosófica espiritualista: nós somos Espíritos, pré-existentes a esta
existência e sobrevivente a ela, tendo uma Inteligência Causal de todas as
coisas.
Finalizando
estas anotações, temos que sobre paradigmas como ‘verdades’, Jung (1997, p.252,
§577) dirá que “nada é mais vulnerável e passageiro do que as teorias
científicas que sempre são meros instrumentos e nunca verdades eternas.”
[grifos meus] e Thomas Khun (1998, p. 13) dirá que os “paradigmas” são “(...)
as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum
tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de
praticantes de uma ciência.” [grifos meus]. Tais referências sobre
‘verdades’ e ‘paradigmas’ nos servem para compreendermos a relatividade dos
modelos que utilizamos e construímos para compreender a realidade. É nessa
perspectiva que trago o respeito a Allan Kardec, como referência basilar do Espiritismo,
com toda a grandeza e limitações que o caracterizavam, para nem sacralizá-lo e
nem invisibilizá-lo. A referência a Allan Kardec, portanto, não é de que ele
não possa ser criticamente analisado, mas sim respeitado, não demolido.
Elias Moraes
(2020) no seu livro Contextualizando Kardec: do século para o XXI
afirmará que “ao longo de toda a sua obra ele [Allan Kardec] deixa claro que
não estava apresentando uma verdade final, mas lançando as bases
de uma nova forma de encarar a vida humana na Terra” [grifos meus]. O
autor dedicou, por sua vez, o capítulo 5º do seu livro para discutir ‘Da
verdade absoluta ao sentido de pós - verdade’, destacando de seu ponto de vista
como Allan Kardec concebeu a ‘verdade’. Dora Incontri (2023), por sua vez,
também dedicará o capítulo 9º de seu livro Kardec para o século 21 para
responder à pergunta ‘O Espiritismo explica a totalidade do real?’.
Ambos trazem, numa perspectiva crítica, uma ressignificação sobre o Kardec mais
humano, não mitificado, lidando com suas próprias limitações e concepções sobre
a ‘verdade’ e o ‘real’.
Por sua vez,
Mario Bunge, em seu livro tratando sobre Teoria e Realidade dirá o
seguinte:
“Pois, de
fato, a verdade não é o desvelamento do que estava oculto como os
pré-socráticos e Heidegger pretenderam: a verdade é feita e não
encontrada, e diagnosticar a verdade é tão difícil como diagnosticar a
virtude.” (Bunge, 1974, p. 134).
Assim, cabe-nos
utilizar sempre Allan Kardec ou sua obra como fonte ou referência das bases do
Espiritismo, não como ‘verdades absolutas’, e considerando sua contínua
atualização.
Robson Santos de
Oliveira
Caruaru,
Pernambuco, agosto de 2025
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Referências:
AMORIM, Deolindo. Allan Kardec (O homem; a
época; o meio; as influências; a missão). Juiz de Fora: Instituto Maria;
Instituto de Cultura Espírita de Juiz de Fora.
BACON, Francis. Ensaios. Tradução de Álvaro Ribeiro.
3ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1992.
BUNGE, Mario. Teoria e Realidade. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1974.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, trad.
Guillon Ribeiro. 54ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 1981.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, trad.
Guillon Ribeiro. 80ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 2011.
KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo,
trad. Guillon Ribeiro, 86ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 2011.
KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, trad.
Guillon Ribeiro. 24ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 1977.
KARDEC, Allan. A Gênese, trad. Guillon
Ribeiro. 26ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 2004.
KARDEC, Allan. Obras Póstumas, 26ª ed. Rio de Janeiro/RJ: FEB, 1993.
KUHN,
Thomas. A
estrutura das revoluções científicas.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
INCONTRI, Dora. Kardec para o século 21. São Paulo:
Comenius, 2023
LAUREANO, Matheus; GARCIA,
Wilson. Allan Kardec: fundador do Espiritismo. CEPA, 2023.
MORAES, Elias. Contextualizando Kardec: do século
XIX ao XXI. Goiânia: Aephus, 2020.
PIMENTEL, Marcelo Gulão. Allan Kardec: vidas, ideias,
obras e influências. Horizonte v. 22, n.67, e226702, jan./abr.2024.
REGIS,
Jaci. Doutrina
Kardecista
(modelo conceitual: reescrevendo o modelo espírita). São Paulo: ICKS, 2008.
[1] Esta divisão das obras pode ser
contestada porque desde O Livro dos Espíritos e O Livros dos Médiuns,
termos que remetem ao Cristianismo associado ao Espiritismo se fazem presentes:
Jesus, cristão, nomes relevantes pertencentes ao Catolicismo assinando as
mensagens, passagens evangélicas etc. Talvez o que Jaci Regis tenha querido
propor é a temática mais central do título e subtítulo das três últimas obras.
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