Temos defendido ao longo dos últimos
tempos a importância dos espíritas pensarem as questões da política, da
economia e da sociedade com vistas a poderem formar uma consciência mais ampla
destas questões, de um ponto de vista filosófico, não partidário, como é
obviamente o caso quando tratamos desses temas no âmbito do movimento espírita.
Acreditamos mesmo que tais reflexões podem
propiciar aos espíritas um melhor desenvolvimento de seu pensar político e social , de um ponto de vista crítico, tendo
em vista a uma melhor participação cidadã, de natureza humanista, nas diversas
sociedades do mundo em que vivem.
Nesse campo temático se há uma
discussão que realmente causa muita divergência, mesmo entre os espíritas estudiosos,
é sobre o conceito de democracia. O que é afinal democracia? Conceito
fundamental que precisa ser aprofundado, pois não basta dizer que somos a favor
da democracia ou que somos contra as ditaduras. É necessário explicar o que
entendemos por democracia.
É necessário iniciar a nossa reflexão
lembrando que o conceito de democracia remonta à Grécia antiga. A pólis
ateniense é o primeiro exemplo de democracia direta no mundo. Desde esse
momento passou a ser comum remontarmos a essa origem, cantarmos em verso e
prosa a democracia que surge em Atenas.
Porém, é necessário irmos além e perguntarmos
como funcionava essa democracia, era realmente democrática a pólis ateniense?
Sabemos que não. Em Atenas apenas o cidadão da pólis tinha direito a se
manifestar na Ágora. A maioria da população era de escravos, mulheres e
estrangeiros que estavam excluídos da participação nos negócios da
cidade-Estado.
A democracia grega, quando olhamos
bem de perto, quando observamos a sua estrutura, não era tão perfeita assim.
Claro que esses defeitos, olhando em retrospecto, não são suficientes para
rejeitamos o grande avanço da proposta democrática grega.
De lá para cá muita coisa mudou.
Muita água correu debaixo da ponte.
Tivemos o fim das cidades-Estado na
Grécia sucedidas pelas várias dominações imperiais da antiguidade, o domínio
teológico e político da Igreja católica, o poder dos monarcas, as revoluções
políticas contra o poder dos monarcas, o poder dos burgueses, as revoluções
contra o poder dos burgueses. Passamos
pelos regimes político-econômicos do tipo escravocrata, feudal, escravista
colonial, capitalista e socialista. Passamos pela revolução agrícola,
industrial e hoje digital.
No século XX, tivemos, ainda,
ditaduras de direita, de esquerda, repúblicas teocráticas, Estados e
legislações de segregação racial, imperialismo moderno, colonialismo, guerras
de intervenção estrangeira, guerras civis, golpes militares e revoluções.
Como se não bastasse os fatos acima
mencionados, em algumas nações, nas últimas décadas, infelizmente, tem ocorrido
uma relação promíscua entre as instituições de Estado e a criminalidade comum,
o que, sem dúvida, acentua os problemas
políticos e sociais, dificultando, ainda mais, a busca pela concretização dos
princípios democráticos.
Na grande maioria das nações do mundo, hoje,
vivemos no sistema que podemos chamar de democracias liberais, representativas,
de perfil econômico capitalista. Há alguns países que ainda ostentam, com maior
ou menor intensidade, alguns princípios de seu período socialista, mas é
possível contar esses países nos dedos após a dissolução da União Soviética e a
queda do muro de Berlim.
O comunismo e o socialismo, em nosso
tempo, nessas duas primeiras décadas do século XXI, não são mais ameaças ao
sistema capitalista e às democracias liberais como insistem os ultradireitistas
desse nosso momento histórico, que se utilizam do absurdo e falso argumento da
“ameaça comunista” para solapar qualquer possibilidade de crítica ao
capitalismo e a essas democracias.
Enfim, o que podemos verificar, hoje,
é que as democracias liberais ainda são extremamente incompletas e que não realizam
todo o potencial do ideal democrático. O grande modelo, para muitos, dessa
democracia moderna, liberal, são os Estados Unidos da América.
Porém, se olharmos para a realidade social
destas democracias liberais com “olhos de ver” observaremos que essa democracia
mínima tem sido tão sintonizada com os interesses do capital que muitas vezes
ela se torna uma verdadeira antidemocracia nos países nos quais ela foi
adotada.
E, ainda pior, em nossos dias, mesmo essa
democracia mínima, está sendo atacada com vistas a retrocessos inaceitáveis que
seguem em direção a concepções neofascistas de sociedade que andam de mãos dadas
com teorias e práticas econômicas neoliberais, as quais destroem qualquer ideia
de justiça social ou bem- estar social.
Frequentemente, a política
contemporânea, em seu melhor sentido, como representativa dos direitos dos
cidadãos, tem sucumbido aos interesses do dinheiro, da acumulação e da riqueza
de alguns poucos. Há necessidade, hoje, de realizarmos uma profunda crítica às
sociedades que giram em torno do capital e esquecem o ser humano.
Devemos, portanto, dizer, em alto e bom som, que,
de um ponto de vista espírita, que privilegia o ser ao invés do ter, os
interesses do “mercado”, do capital, das minorias privilegiadas em termos
econômicos, não devem prevalecer sobre os interesses da sociedade como um todo.
É necessário, sob esse horizonte
alargado de sociedade, voltarmos a acreditar que os homens e mulheres de nosso
tempo, coletivamente, podem construir um destino político diferente, sendo imprescindível,
em nosso entendimento, começarmos a construir um novo ideal democrático tendo
em vista o futuro da humanidade.
Para esse objetivo é urgente nos descartarmos
da ideia, muito útil aos que mandam no mundo e que estão confortáveis nas situações
de injustiça e exclusão dos outros, de que não há outro mundo possível.
Nesta linha de raciocínio, devemos
ter como premissa fundamental, que a democracia ainda é a grande utopia a ser alcançada.
Nesse sentido, é necessário elevar o nosso conceito de democracia, não nos
contentando, apenas, com as chamadas liberdades formais, aquelas dos direitos e
garantias do indivíduo perante as possíveis arbitrariedades do Estado.
Não há que se falar em democracia
real sem considerarmos também as necessidades materiais dos cidadãos. Não é
possível falar em democracia em um mundo de milhões de marginalizados no
sentido do acesso aos bens fundamentais ao desenvolvimento da vida.
É necessário lembrar que, atentar
contra a dignidade material das pessoas no nível fundamental da sobrevivência
digna, é também atentar contra os direitos humanos. Há países que se dizem
“livres” e “defensores da liberdade”, mas que atentam contra os direitos
humanos no sentido do absoluto desamparo às condições materiais de vida de seus
cidadãos. Liberdade para morrer de fome não é liberdade.
Pensamos que esta maneira de
compreender os problemas políticos e sociais de nosso tempo corresponde
plenamente aos generosos princípios que podemos encontrar em toda a obra de
Allan Kardec, a qual nos convida à permanente transformação individual e
coletiva.
Entendemos que nós, espíritas, podemos
auxiliar o processo de transformação dessa ordem de coisas, em primeiro lugar
denunciando as sociedades que permitem a acumulação de riqueza nas mãos de uns
poucos enquanto milhões, em nossos países e no mundo, se encontram privados do
básico para uma vida digna e decente.
Dessa forma, estaremos dando um primeiro passo
fundamental no enfrentamento dessas situações que é o da conscientização do
maior número de pessoas sobre esse grave problema de nosso tempo. O movimento espírita,
com seus centros e instituições, pode colaborar muito nesse processo, sendo claro que se não o fizer estará
colaborando também, só que em um sentido contrário, favorecendo a alienação,
portanto, o status quo, a exploração.
E, em segundo lugar, nós espíritas,
podemos auxiliar o movimento geral de transformação social com a nossa
participação, sempre pacífica em conformidade com os princípios de não
violência ensinados pelo espiritismo, em todas as instâncias da palavra, da
ação e da manifestação, que nos forem acessíveis no campo das lutas sociais.
Para isso, é necessário nos livrarmos
dos conceitos superficiais e ingênuos de democracia e ditadura. É certo que
todo espírita minimamente informado dirá, como um mantra religioso ou como uma
verdade metafísica quase que vinda do alto, que é favorável à liberdade e à
justiça social. Claro, não poderia ser diferente do ponto de vista filosófico-espírita.
Isso é de uma evidência cristalina, mesmo em uma baixa compreensão da filosofia
espírita.
Mas o que devemos ter em mente é que
a conquista destes fatores, liberdade e justiça social, em sociedade, não
ocorrerá simplesmente por gratuidade de Deus ou benevolência dos poderosos.
Liberdade e justiça social devem ser conquistadas através das lutas sociais.
É necessário levar em conta os interesses
materiais em jogo, em uma palavra: a luta de classes. Mesmo que essa luta de
classes, em nosso tempo, tenha adquirido características e peculiaridades
distintas da época em que foi concebida teoricamente.
Sem uma compreensão dialética da vida
social, dos conflitos de interesses em jogo, das resistências e pressões no
campo prático da vida social, não avançaremos um milímetro nem mesmo na
compreensão do que efetivamente acontece em nossas sociedades contemporâneas. E
sem compreender, não conseguiremos contribuir.
É necessário termos claro que as nossas
sociedades capitalistas contemporâneas não estão em conformidade com a ideia de
justiça natural que encontramos nas propostas espíritas. E que só poderemos
realmente ter um conceito mais amplo de democracia quando extinguirmos,
socialmente, economicamente, e politicamente, os abismos materiais entre as pessoas,
que as fazem tão diferentes em suas condições de vida, apesar da mesma
humanidade.
Não se trata de um objetivo fácil, é um
horizonte a ser perseguido por todos que amam a justiça. Os espíritas entre
eles.
Essa condição de maior igualdade,
dará mais amplo sentido, até mesmo, ao processo da reencarnação dos indivíduos,
porque poderíamos perguntar: de que adianta ao Espírito reencarnar em condições
tão desfavoráveis que, muitas vezes, o fazem sucumbir em relação ao próprio
objetivo da reencarnação, que é seu autodesenvolvimento intelecto-moral em
sociedade?
Na atualidade, há estudiosos que afirmam que
vivemos a época do capitalismo pós-fordista, que privilegia a financeirização
da economia ao invés da produção, deixando, portanto, nessa nova fase do
capitalismo mundial, milhões de pessoas no mundo sem ter condições de acesso a
um trabalho ou tendo como perspectiva apenas trabalhos precarizados.
Em O Livro dos Espíritos, publicado em
meados do século XIX, época em que ainda não tínhamos no mundo um capitalismo
tão desenvolvido, encontramos uma interessantíssima antecipação crítica às
subjetividades que giram apenas em torno do capital, da acumulação, do ter.
Tais subjetividades, ao longo do tempo,
acabaram por criar, em uma união de interesses, um sistema, uma estrutura
econômica-social-política, altamente favorecedora do egoísmo pessoal. Assim
respondiam os Espíritos às perguntas de Kardec à época:
Questão
711- O uso dos bens da terra é um direito de todos os homens? R: Esse direito é a consequência da
necessidade de viver.
Questão 717- Que pensar dos que açambarcam os
bens da terra para se proporcionarem o supérfluo, em prejuízo dos que não têm
sequer o necessário? R: Desconhecem a
lei de Deus e terão de responder pelas privações que ocasionarem.
Em um livro lançado,
no início da década de noventa do século XX, um teórico político
norte-americano, Francis Fukuyama, ao verificar a queda do muro de Berlim e a
decadência da União Soviética, propôs que a democracia liberal, de perfil
capitalista, representava uma espécie de estágio máximo alcançado pela
humanidade, uma espécie de “fim da história” quanto aos modelos políticos e
econômicos que disputaram o século XX.
Algumas décadas
depois do lançamento da famosa obra, verificamos que nossas democracias
liberais, ao invés de patrocinarem maior inclusão das pessoas aos seus
benefícios, acabaram por acentuar, ainda mais, as contradições materiais no
mundo.
A insegurança
alimentar, o desamparo, a falta de acesso à saúde, à educação, ao saneamento
básico, ao teto, as guerras e intervenções estrangeiras na soberania dos países
e a destruição perversa do meio ambiente por razões econômicas ainda são uma
realidade vivida na pele por milhões em nosso mundo, os quais são os
“perdedores” desse sistema capitalista e dessa democracia liberal que quer nos
convencer que todos seremos “vencedores”.
Acreditamos, portanto, que a história não acabou e que ainda nos cabe construir modelos políticos, sociais e econômicos, efetivamente democráticos, que realizem, concretamente, na vida social, os princípios da liberdade e da igualdade enaltecidos pela filosofia espírita e por todos os humanistas do mundo. Tememos que se não alcançarmos maiores patamares de democracia real, estaremos nos encaminhando para a barbárie.
*Ricardo de Morais Nunes:- Servidor público, bacharel em direito e licenciado em filosofia. Expositor espírita e articulista do Jornal de Cultura Espírita Abertura, Ex-presidente do CPDoc (Centro de Pesquisa e Documentação Espírita). Atualmente Presidente da CEPABrasil- Associação brasileira dos delegados e amigos da Associação Espírita Internacional- CEPA.
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