13 maio 2023

SOBRE O EVANGELHO ANTIRRACISTA

 Ricardo de Morais Nunes – Presidente da CEPABrasil

Tenho acompanhado a polêmica de o Evangelho Segundo o Espiritismo – Edição antirracista publicado pelo coletivo Espíritas à Esquerda. Essa obra faz parte de uma coleção que o grupo pretende publicar analisando passagens de caráter racista nas obras de Allan Kardec. Tenho visto posicionamentos favoráveis e desfavoráveis à iniciativa. No presente artigo exporei minha opinião sobre o tema. Antes quero dizer que gosto do coletivo Espíritas à Esquerda. Trata-se de um grupo de espíritas comprometidos com o aspecto social do espiritismo em um sentido progressista. O grupo foi muito importante ao movimento espírita brasileiro com seus posicionamentos políticos na triste era Bolsonaro. Teve a capacidade de reunir os espíritas que estavam desiludidos com a onda de reacionarismo que tomou conta de grande parte do movimento espírita e, com isso, deu novo ânimo a muitos espíritas que estavam deixando de frequentar as casas espíritas por pura desilusão com aqueles que se diziam espíritas e suas lideranças.

Feitas essas considerações, passo à questão objeto de análise nesse artigo.

 Entendo que a transcrição de capa “edição antirracista” acaba por dar ao público em geral uma impressão forte e preliminar extremamente desfavorável a Kardec e ao espiritismo, e dessa forma reforça incompreensões em relação à obra original. Essa indicação na capa contém um pressuposto implícito de que a edição original de Kardec era racista, o que, na minha opinião, não dá a justa medida da complexidade do tema sob análise.

 O despertamento das consciências para o problema do racismo tem se dado lentamente através dos processos históricos. A palavra racista hoje possui um peso extraordinário, pois temos aprendido através das páginas da história sobre as várias expressões do racismo no que diz respeito às suas vítimas, judeus, negros, indígenas, etc., e suas consequências deploráveis, as quais incluem, não apenas elaborações teóricas pretensamente cientificas sobre a superioridade das raças, mas também condutas criminosas realizadas por pessoas, grupos e Estados organizados.

 Sem dúvida que há trechos nas obras de Allan Kardec que apontam para uma concepção eurocêntrica de superioridade civilizacional e racial dos europeus em relação ao restante da humanidade segundo o espírito do tempo. Nesse sentido, há equívocos raciais no trato das pessoas de pele negra, equívocos sérios não mais admissíveis na atualidade.

Apesar dessas lamentáveis concepções científicas de época, o espiritismo se coloca frontalmente contra a escravidão, defende a identidade de origem e destino dos Espíritos, postula as reencarnações sucessivas, nas quais trocamos de papéis sociais, como oportunidade de evolução a todos os seres humanos, não justifica as opressões sociais como sendo de origem divina e responsabiliza os homens e mulheres pelos males sociais, em meio a tantos outros ensinamentos que trazem a ideia de que somos efetivamente todos irmãos   e que não devemos explorar ou discriminar uns aos outros por nenhum motivo.

 Esses elementos teóricos fundamentais da filosofia espírita devem ser ressaltados quando falamos do tema do racismo na obra de Kardec. Eles oferecem, segundo penso, um contrapeso relevante às teorias raciais vigentes na Europa ao tempo de Allan Kardec.

Não questiono a seriedade e boa intenção dos Espíritas à Esquerda. Mas é necessário reconhecer que mexer no interior da obra e capa de uma obra reverenciada por espíritas do mundo inteiro, mesmo que preservando os textos originais, mesmo que seguindo orientações do termo de ajustamento de conduta do Ministério Público, é um ato extremamente polêmico. Esse modus operandi acabou por trazer à discussão questões absolutamente improdutivas ao desenvolvimento da coleção.

  Talvez fosse melhor para os objetivos do projeto optar por outros caminhos menos turbulentos e de mais fácil assimilação ao movimento espírita. Certamente que com menos impacto publicitário, mas com barreiras mais reforçadas de proteção para o enfrentamento da crítica com vistas a preservar o grupo de polêmicas inúteis e desgastantes que acabam por desviar o foco do objetivo principal da coleção.

Quem sabe um prefácio mais desenvolvido com os textos criticáveis e os textos reescritos, notas de rodapé bem elaboradas e mesmo um livro com a marca do grupo, seriam, provavelmente, caminhos mais adequados ao enfrentamento do tema.

Acredito que manter rigorosamente, sem interpolações, a versão original da obra, reforçaria a legitimidade do grupo na proposta de discussão do tema. E atrairia a simpatia do movimento espírita progressista em geral, pois os Espíritas à Esquerda estariam prestando um justo tributo ao codificador e fundador do espiritismo e sua obra.

As questões de forma, de estratégia comunicacional, são fundamentais nesse projeto com vistas ao maior sucesso possível. E o sucesso nessa questão está na mais ampla conscientização do maior número de pessoas da evolução das ideias sobre a temática do racismo no âmbito do movimento espírita contemporâneo.

 Porém, preservando ao máximo a imagem de generosidade que sabemos existir na obra de Allan Kardec, imagem essa que corresponde, de fato, tanto aos princípios filosóficos fundamentais do espiritismo quanto à personalidade histórica de seu fundador.

 Fala-se muito do aspecto evolutivo dos conhecimentos espíritas, e que o próprio Kardec apoiaria a atualização do espiritismo conforme os dados da ciência e da cultura em geral. Como espírita laico e livre pensador sou defensor dessa ideia há anos e sou totalmente comprometido com ela.

Mas essa atualização não precisa ser feita nos livros originários do espiritismo.  Basta em nossos estudos e publicações atualizarmos conceitos segundo as conquistas de nosso tempo deixando a obra original intacta como registro histórico dos conhecimentos de uma época.

 Por outro lado, a obra de qualquer autor, por mais revolucionária que seja em um determinado período histórico, sempre estará dentro dos limites epistemológicos de sua época, em parte traz o novo e em parte conserva o velho. A filosofia espírita carrega essa contradição, não apenas no que diz respeito às questões raciais.

Todas essas considerações não deixam de levar em conta a coragem do grupo Espíritas à Esquerda em tocar em um tema que praticamente ninguém toca no movimento espírita do Brasil. O movimento espírita brasileiro é de classe média, branca, letrada. Essa classe média, via de regra, possui pouco interesse em discutir esse tema nos ambientes institucionais do espiritismo. Nesse sentido, os Espíritas à Esquerda cumprem relevante papel no movimento espírita brasileiro.

 Mas, apesar de tudo, penso que essa circunstância não é suficiente para justificar ao grupo mexer em obras clássicas do espiritismo. Mesmo que as obras sob intervenção não fossem tão importantes, verdadeiros patrimônios da cultura universal como são as obras de Allan Kardec, os livros em geral, em suas luzes e sombras, equívocos teóricos e acertos, devem ser preservados exatamente como seus autores nos legaram, pois representam o melhor e o pior de um tempo histórico.

É provável que quando esse artigo for publicado já tenha sido lançado O Livro dos Espíritos - edição antirracista. Porém, deixo registrada aqui minha opinião com vistas a contribuir de alguma forma com o debate em torno desse importante e polêmico tema.

Nenhum comentário: