Ricardo de Morais Nunes – Presidente da CEPABrasil
Feitas essas considerações, passo à
questão objeto de análise nesse artigo.
Entendo que a transcrição de capa “edição
antirracista” acaba por dar ao público em geral uma impressão forte e preliminar
extremamente desfavorável a Kardec e ao espiritismo, e
dessa forma reforça incompreensões em relação à obra original. Essa indicação
na capa contém um pressuposto implícito de que a edição original de Kardec era racista,
o que, na minha opinião, não dá a justa medida da complexidade do tema sob
análise.
O despertamento das consciências
para o problema do racismo tem se dado lentamente através dos processos históricos.
A palavra racista hoje possui um peso extraordinário, pois temos aprendido
através das páginas da história sobre as várias expressões do racismo no que
diz respeito às suas vítimas, judeus, negros, indígenas, etc., e suas consequências
deploráveis, as quais incluem, não apenas elaborações teóricas pretensamente
cientificas sobre a superioridade das raças, mas também condutas criminosas
realizadas por pessoas, grupos e Estados organizados.
Sem dúvida que há trechos nas obras
de Allan Kardec que apontam para uma concepção eurocêntrica de superioridade civilizacional
e racial dos europeus em relação ao restante da humanidade segundo o espírito
do tempo. Nesse sentido, há equívocos raciais no trato das pessoas de pele
negra, equívocos sérios não mais admissíveis na atualidade.
Apesar dessas lamentáveis concepções
científicas de época, o espiritismo se coloca frontalmente contra a escravidão,
defende a identidade de origem e destino dos Espíritos, postula as
reencarnações sucessivas, nas quais trocamos de papéis sociais, como
oportunidade de evolução a todos os seres humanos, não justifica as opressões
sociais como sendo de origem divina e responsabiliza os homens e mulheres pelos
males sociais, em meio a tantos outros ensinamentos que trazem a ideia de que
somos efetivamente todos irmãos e que não devemos explorar ou discriminar uns
aos outros por nenhum motivo.
Esses elementos teóricos fundamentais da
filosofia espírita devem ser ressaltados quando falamos do tema do racismo na
obra de Kardec. Eles oferecem, segundo penso, um contrapeso relevante às
teorias raciais vigentes na Europa ao tempo de Allan Kardec.
Não questiono a seriedade e boa
intenção dos Espíritas à Esquerda. Mas é necessário reconhecer que mexer no
interior da obra e capa de uma obra reverenciada por espíritas do mundo inteiro,
mesmo que preservando os textos originais, mesmo que seguindo orientações do
termo de ajustamento de conduta do Ministério Público, é um ato extremamente polêmico.
Esse modus operandi acabou por trazer à discussão questões absolutamente
improdutivas ao desenvolvimento da coleção.
Talvez fosse
melhor para os objetivos do projeto optar por outros caminhos menos turbulentos
e de mais fácil assimilação ao movimento espírita. Certamente que com menos
impacto publicitário, mas com barreiras mais reforçadas de proteção para o
enfrentamento da crítica com vistas a preservar o grupo de polêmicas inúteis e
desgastantes que acabam por desviar o foco do objetivo principal da coleção.
Quem sabe um prefácio mais
desenvolvido com os textos criticáveis e os textos reescritos, notas de rodapé
bem elaboradas e mesmo um livro com a marca do grupo, seriam, provavelmente,
caminhos mais adequados ao enfrentamento do tema.
Acredito que manter rigorosamente,
sem interpolações, a versão original da obra, reforçaria a legitimidade do
grupo na proposta de discussão do tema. E atrairia a simpatia do movimento
espírita progressista em geral, pois os Espíritas à Esquerda estariam prestando
um justo tributo ao codificador e fundador do espiritismo e sua obra.
As questões de forma, de estratégia
comunicacional, são fundamentais nesse projeto com vistas ao maior sucesso possível.
E o sucesso nessa questão está na mais ampla conscientização do maior número de
pessoas da evolução das ideias sobre a temática do racismo no âmbito do
movimento espírita contemporâneo.
Porém, preservando ao máximo a imagem de generosidade
que sabemos existir na obra de Allan Kardec, imagem essa que corresponde, de
fato, tanto aos princípios filosóficos fundamentais do espiritismo quanto à
personalidade histórica de seu fundador.
Fala-se muito do aspecto evolutivo dos
conhecimentos espíritas, e que o próprio Kardec apoiaria a atualização do
espiritismo conforme os dados da ciência e da cultura em geral. Como espírita
laico e livre pensador sou defensor dessa ideia há anos e sou totalmente
comprometido com ela.
Mas essa atualização não precisa ser
feita nos livros originários do espiritismo. Basta em nossos estudos e publicações
atualizarmos conceitos segundo as conquistas de nosso tempo deixando a obra
original intacta como registro histórico dos conhecimentos de uma época.
Por outro lado, a obra de qualquer autor, por
mais revolucionária que seja em um determinado período histórico, sempre estará
dentro dos limites epistemológicos de sua época, em parte traz o novo e em
parte conserva o velho. A filosofia espírita carrega essa contradição, não
apenas no que diz respeito às questões raciais.
Todas essas considerações não deixam
de levar em conta a coragem do grupo Espíritas à Esquerda em tocar em um tema
que praticamente ninguém toca no movimento espírita do Brasil. O movimento
espírita brasileiro é de classe média, branca, letrada. Essa classe média, via
de regra, possui pouco interesse em discutir esse tema nos ambientes
institucionais do espiritismo. Nesse sentido, os Espíritas à Esquerda cumprem
relevante papel no movimento espírita brasileiro.
Mas, apesar de tudo, penso que essa
circunstância não é suficiente para justificar ao grupo mexer em obras clássicas
do espiritismo. Mesmo que as obras sob intervenção não fossem tão importantes,
verdadeiros patrimônios da cultura universal como são as obras de Allan Kardec,
os livros em geral, em suas luzes e sombras, equívocos teóricos e acertos,
devem ser preservados exatamente como seus autores nos legaram, pois representam
o melhor e o pior de um tempo histórico.
É provável que quando esse artigo for
publicado já tenha sido lançado O Livro dos Espíritos - edição
antirracista. Porém, deixo registrada aqui minha opinião com vistas a
contribuir de alguma forma com o debate em torno desse importante e polêmico
tema.
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