Por
Jacira Silva, Marcelo Henrique e Milton Medran Moreira*
"Há sempre crime quando se transgride a Lei de Deus."
("O Livro dos Espíritos, item 358)
O Espiritismo é uma doutrina relativamente nova para o contexto do planeta Terra. Cento e sessenta e cinco anos (1857-2022) é muito pouco para que sua filosofia seja difundida, entendida e, sobretudo, praticada. Mesmo que seus princípios sejam universais e permanentes, com referência a ensinos dados por vários seres humanos no curso da História ou que componham o ideário de religiões e filosofias, da Antiguidade para a Modernidade, o desenho integral e sistêmico das Leis Espirituais ainda necessita derivar, em termos de compreensão e entendimento, da maturidade dos indivíduos (Espíritos).
Os temas agudos – principalmente
os que se relacionam com os direitos fundamentais da humanidade – sempre
motivam debates acalorados em que as paixões humanas impedem o exercício da
racionalidade aplicada e do bom senso. Assim, é comum vermos manifestações que
pertencem ao campo do mero dogmatismo, seja pela ausência de justificativa
lógico-racional para determinado posicionamento, seja pela busca de explicações
calcadas em extratos ou afirmações isoladas e parciais, para fundamentar dado
elemento de convicção.
Assim também ocorre com a
legislação humana, em qualquer país do planeta: pessoas buscam referências
esparsas (um artigo de uma norma, por exemplo), isoladamente, para validar
determinada tese jurídica, esquecendo-se de referências obrigatórias da exegese
do Direito, como a superposição dos princípios às regras, a interpretação
sistêmica, a hierarquia entre as leis e a função teleológica da Justiça
(intenção do legislador e do julgador na sua aplicação).
Nosso ensaio tem como mote uma
notícia que ocupa, nesses dias, posição de destaque no noticiário brasileiro e,
também, internacional, a atuação de representantes da área judicial de nosso
país, uma juíza e uma promotora, em relação a um caso envolvendo uma menor, no
Estado de Santa Catarina. A personagem central, de onze anos de idade, sofreu a
brutal violência do estupro, com diversas circunstâncias agravantes: menoridade
extrema; vulnerabilidade física, psicológica e espiritual; condição especial do
local do crime (a própria casa); relação de dependência na autoria do delito. A
ocorrência e seus efeitos implicam, também, a urgente necessidade de medidas
suplementares de proteção e amparo à vítima.
O caso possui, ainda, um contorno
peculiar e de relevância territorial-temporal, uma vez que, nos últimos anos, a
ascendência de um governo de ultradireita ao comando da nação trouxe à pauta
nacional (legislativo e judiciário) a perspectiva da reformulação das normas e
dos entendimentos judiciais vigentes, com, notadamente, a ampliação do espectro
do “direito inalienável à vida”, com a diminuição das hipóteses legais e
jurisprudenciais de interrupção da gravidez – inclusive as consolidadas por
várias décadas de maturação e evolução do Direito e as inovações
interpretativas do Supremo Tribunal Federal. Um visível e repugnante
retrocesso, convenhamos.
A ideologia transpõe qualquer
valor, como evidencia o fato de uma magistrada virar as costas para o direito,
olvidando todos os indicadores legais. O aborto é previsto como crime no código
penal de 1940, sem que os legisladores tenham conseguido inovar a legislação
nesse ponto, unicamente por força da ideologia retrógrada e radical que alimenta
um lucrativo mercado negro no Brasil, rede de clínicas clandestinas, venda de
abortivos e a oferta de laqueadura de trompas por serviços sociais controlados
por políticos.
Mas é esse mesmo código penal que
também dispõe sobre a legalidade do aborto em duas situações: 1ª) se não há
outro meio de salvar a vida da gestante; 2ª) se a gravidez resulta de estupro,
sendo precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal (Art. 128). Entendida a vida em seu sentido amplo, há de se
reconhecer que ambas estão presentes no caso dessa garota.
Não bastasse a autorização
explícita da lei para o aborto no caso em tela, desde 2017 tramita no STF a
ADPF 442 – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental –, que propõe a
descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação, ao
argumento legítimo de que a criminalização prevista nos artigos 124 e 126 do
Código Penal não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Sob todos
os aspectos, a legislação vigente é atrasada, sexista, socialmente injusta e
não promove Justiça.
Não é demais recordar que a
decisão judicial discutida também se posiciona na contramão da vontade popular,
conforme pesquisa recente (MENON, 2022) que revelou queda considerável no
número de brasileiros que deseja proibir a prática do aborto em qualquer
situação.
A proteção à vida do nascituro
não pode ser dissociada de elementos igualmente importantes na balança
jurídica, quais sejam a saúde e a sobrevivência da gestante e sua saúde física,
moral, psicológica, psíquica e espiritual. Embora a matéria seja, de fato, complexa,
o próprio Direito oferece os meios e os instrumentos para a aferição do justo,
permitindo a melhor e mais adequada resposta jurisdicional aos jurisdicionados.
Para o quadrante de
inviolabilidade da vida – argumento em que se agarram muitos para afirmar
peremptoriamente a condição total de crime para o aborto, sem excludentes – é
preciso pensar e repensar tal conceito, ou seja, o que é inviolável. Também é
inviolável o direito à vida da criança, vítima de um crime tão avassalador,
assim como é o direito de toda gestante decidir que efeitos é capaz de suportar
no curso da existência. E este nos parece ser o ponto fundamental de discussão.
Preliminarmente, é necessário
considerar a razão fundante de uma gravidez. Neste contexto, a gestação,
decorrente da cópula, com a simbiose entre os materiais genéticos, na interação
entre as gônadas de um homem e uma mulher, biologicamente falando, não pode, em
nenhuma hipótese ou circunstância, ser derivada de um ato criminoso. E o crime,
neste cenário, é o de estupro, um dos mais violentos e comprometedores do
exercício de direitos de um ser humano e, neste caso, uma mulher.
A simples ocorrência do estupro
(um crime sexual gravíssimo) embasa juridicamente a realização, segundo a
legislação brasileira, do aborto sentimental e humanitário (art. 128, II, do
Código Penal). Contudo, é a mesma norma que vincula à pessoalidade da vítima do
estupro o requisito de seu consentimento. Em outras palavras, é a mulher
(gestante) quem deve ser ouvida – e mais ninguém, em regra – acerca da
manutenção ou não daquela gravidez indesejada e, mais uma vez frisamos,
criminosa.
O caso em exame, no entanto,
possui outras particularidades, que são ainda mais relevantes e inafastáveis. Nos
termos do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a pessoa até
doze anos de idade incompletos, é considerada criança, e é adolescente, se
estiver entre doze e dezoito anos, considerados, ambos, em condição peculiar de
pessoas em desenvolvimento (art. 6º, do ECA). A vítima é uma criança impúbere,
de onze anos de idade. Sua condição pessoal, portanto, é de alta
vulnerabilidade e os elementos afetos à sua saúde física, moral, psicológica,
psíquica e espiritual podem ser aferidas por profissionais competentes e
especializados, como médicos e terapeutas.
E, para além da apresentação de
laudos e diagnósticos, a própria condição pessoal da vítima – sua idade
precoce, sua infância e inocência destruídas, sua exposição pública, sua
estrutura e constituição familiar deterioradas – já seria suficiente, de per
si, para justificar, legal e judicialmente, a realização do aborto. Impossível
afastar estas premissas, portanto.
Diante de tal quadro, o terceiro
elemento preponderante é a atuação dos representantes do Poder Judiciário e do
Ministério Público no caso em tela. Pelas informações midiáticas disponíveis
trata-se de uma atuação desastrosa dos servidores públicos envolvidos, calcada
na sugestão e na insistência, passível de ser enquadrada como coação moral,
para que uma menina de onze anos, repetimos, continuasse com a gestação e não
fosse alcançada pela autorização judicial para a realização do ato abortivo.
Isto é de uma desumanidade sem precedentes. Nenhum argumento, sobretudo
religioso ou filosófico, “extra legem” e “extra petita”, podem fundamentar e
validar tais condutas.
Em transcrições de falas
ocorridas durante a sessão judicial, consta a fala da juíza: “Suportaria ficar
mais um pouquinho?”. E, depois, a intervenção da promotora: “A gente mantinha
mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, porque, para ele ter a chance de
sobreviver mais, ele precisa tomar os medicamentos para o pulmão se formar
completamente”. E a mesma encerra: “Em vez de deixar ele morrer – porque já é
um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele
morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a
eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele… Ele vai nascer
chorando, não [inaudível] medicamento para ele morrer” (The Intercept Brasil,
2022).
São intervenções chocantes,
capazes de gerar perplexidade e até revolta seja em operadores jurídicos, como
nós, acostumados a situações congêneres e a processos com interesses
conflitantes e colidentes, envolvendo direitos fundamentais, como em qualquer
ser humano ou qualquer brasileiro diante da comoção que o caso real pode
provocar.
A defesa (incondicional) da vida,
matéria afeta não só ao Judiciário como a qualquer ser humano, não pode ser
argumento para uma violência de grave quilate aplicada a um ser profundamente
abalado em sua condição biopsiquicoespiritual, como aquela menina, cuja vida
também precisa ser protegida. E, tampouco, pode servir de pano de fundo para a
batalha permanente que existe no cenário brasileiro, entre religiosos e
não-religiosos, ou entre dogmáticos e não-dogmáticos, ou, ainda, entre
fundamentalistas e não-fundamentalistas. Não é, pois, uma questão religiosa,
mas uma questão de saúde e, mais que isso, de Humanidade, solidamente albergada
pelo guarda-chuvas do Direito. Ainda assim, há outro aspecto a considerar, o de
que não se escolhe entre duas vidas, porém os manuais de Direito e, no nosso
caso, “O livro dos Espíritos”, sugerem manter a vida que já existe, em
detrimento da que ainda não existe.
Resumir o debate ao tatame ou
ringue das religiões e seus proselitismos é desviar o foco e minimizar os
gravíssimos efeitos do crime e de seu tratamento – até o presente momento –
jurisdicional. Em realidade, a criança é duplamente vítima: tanto do crime de
estupro, como do lamentável tratamento recebido do Poder Judiciário, que deveria
ser o primeiro a salvaguardar a sua integridade humana, em todos os seus
elementos e caracteres. A mera cogitação da continuidade da gravidez resultante
de estupro em uma criança é, pois, ilegal, arbitrária e desumana!
Por fim, é necessário, também,
analisar o fato e sua repercussão em relação à comunidade espírita – a que
pertencemos. Temos certeza de que um bom número de adeptos e simpatizantes do
Espiritismo, já deve ter empunhado, como se fosse uma Bíblia, o seu exemplar de
“O livro dos Espíritos”, para cravar como regra pétrea a sacralidade da vida e
a impossibilidade da aceitação “espiritual” do aborto daquela menor (repetimos,
uma vez, mais, uma criança de onze anos de idade). A regra pétrea, para eles, é
o contido na resposta à questão formulada por Allan Kardec, por volta de 1857,
e que consta da abertura deste artigo.
Crime existe sempre quando se
transgride a Lei de Deus! Qual é a Lei de Deus? – nos perguntamos e
direcionamos a mesma pergunta a estes que, valendo-se do argumento espírita”
desejam que a criança estuprada não aborte! Que Lei é esta? Quais seus
parâmetros de aplicabilidade? Por certo não leram a parte final da Q. 344 de O
Livro dos Espíritos, na qual nos foi ensinado que a união do espírito ao corpo só
é completa por ocasião do nascimento. Vale ainda destacar as lições preciosas,
em regra ignoradas, contidas no mesmo livro, abaixo transcritas.
A primeira, na questão 346: “Que
faz o Espírito, se o corpo que ele escolheu morre antes de se verificar o
nascimento?”. E a resposta: “Escolhe outro”. A segunda, adiante, no item 357: “Que
consequências tem para o Espírito o aborto?”. Para a qual se obteve a seguinte
resolução: “É uma existência nulificada que ele terá de recomeçar”.
É no próprio “O livro dos
Espíritos”, aplicando-se a hermenêutica racional, que se lê, no conjunto da
obra, a solidariedade, o humanismo, o amor, nada condizentes com o castigo e a
punição descontextualizados e previstos na resposta à Q. 358 mencionada em
epígrafe, cujo fundamento não encontra ressonância no espírito da obra.
Deveremos considerar, como
espíritas, o estupro como um “escândalo à luz do Evangelho”, ou “mal
necessário” à continuidade da gestação, até o parto e a sobrevida (física) do
feto, constituindo, plenamente, um ser humano, um indivíduo, juridicamente
falando? Deveremos entender que há, na ocorrência do estupro, alguma “prova” ou
“expiação”, previamente programada para aquela menina? Deveremos
“caridosamente” prescrever que haverá muito aprendizado e muito progresso
“espiritual” para aquele pequenino ser, em carregar por nove meses um filho
indesejado e até incompreensível (para uma menina!) e levar, pela vida inteira,
todas as vezes que fitar o(a) filho(a), como algo que decorreu de um brutal
crime cometido por alguém que deveria protegê-la e amá-la?
Não, senhores e senhoras
espíritas! Não é este o Espiritismo em que nós, os autores deste texto, acreditamos
e atuamos. Não nos parece ser esta interpretação que a Doutrina dos Espíritos
pode dar ao caso concreto, inclusive com o seu mais destacado fundamento de
validade: o consolo e, ainda, a generosidade e o amor, correlatos. É impossível
consolar à criança-gestante ou à criança-mãe, nem a seus entes mais caros, ter
que manter uma gestação desta natureza, apenas para “agradar” convenções de
dogmas religiosos.
A transgressão da Lei de Deus
está, neste caso, em forçar uma criança a gestar e parir uma outra criança, e
levar por toda a sua existência física e, depois, pela caminhada espiritual que
virá, na condição de desencarnado, atos e consequências tão infelizes e cruéis.
Somente uma ideologia fundamentalista poderia explicar a prevenção de um
suposto crime pela prática real de um crime por parte do braço forte do Estado.
Foi para situações como esta que os Espíritos Superiores advertiram acerca da
Lei Divina e do seu cumprimento.
A título de síntese desta
reflexão, elegemos a resposta à questão 359, de “O livro dos Espíritos”: “Preferível
é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe”. Talvez
a maioria dos espíritas não tenha atentado ainda para o aspecto revolucionário
do conceito contido na resposta dada pelos espíritos a Kardec, quando este lhes
indagou: “No caso em que o nascimento da criança pusesse em perigo a vida da
mãe dela, haverá crime em sacrificar o ser que ainda não existe a sacrificar o
que já existe?”.
O revolucionário que podemos
vislumbrar nessa resposta é que, em matéria de aborto, as religiões (e as
legislações inspiradas em seus dogmas) costumam considerar apenas o feto como sujeito
de direito. Já a proposta contida na resposta à questão 359 elege a gestante como
outro, e mais relevante, sujeito de direito. Com efeito, até hoje, a orientação
oficial da Igreja Católica é no sentido da não interrupção da gravidez, nas
hipóteses de risco à vida e à saúde da mãe. Numa palavra, sacraliza-se o ser em
formação, que sequer conquistou ainda a personalidade civil e que, por lei, não
tem mais que “expectativa de direito”, deixando-se de reconhecer a prerrogativa
da continuação da vida de um ser que está em pleno exercício desse direito
fundamental. A sacralidade conferida ao conjunto de células em formação ou ao
próprio feto é, peremptoriamente, negada à mulher.
Tão gritante paradoxo levou-nos a
erigir a questão 359, de “O livro dos Espíritos” como a síntese da posição
espírita relativamente a esse complexo tema. Por esse argumento e por aqueles
antes expostos, estamos convictos, em harmonia com todos os segmentos
humanistas e, fundados, ainda, em um espiritualismo racional e progressista,
que a atitude daquela Magistrada, infelizmente abonada pela representante do
Ministério Público, no procedimento judicial descrito, foi profundamente
desumana e claramente atentatória à lei natural (ou divina, consoante a
definição da questão 614, de “O livro dos Espíritos”) e ao próprio direito
positivo.
* Jacira
Silva é juíza aposentada. Marcelo Henrique é advogado. Milton Medran Moreira é
promotor e, depois, procurador de justiça aposentado.
***
Fontes:
BRASIL. Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei
Federal n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>.
Acesso em 20. Jun. 2022.
_____. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei
Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>.
Acesso em 20. Jun. 2022.
KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Trad. José
Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: Lake, 2004.
MENON, Isabella. Folha de SP. Edição n. 34.030. 4
junho 2022. Datafolha: Cai parcela da população que quer proibir aborto em qualquer
caso. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/06/datafolha-cai-parcela-da-populacao-que-quer-proibir-aborto-em-qualquer-caso.shtml>.
Acesso em 20. Jun. 2022.
THE INTERCEPT BRASIL. Vídeo Juíza SC menina 11 anos
estupro aborto. Disponível em <https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/>.
Acesso em 20. Jun. 2022.
[Artigo publicado originalmente
em www.comkardec.net.br]
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