Do ponto de vista espírita, sexo biológico é a
conformação morfofisiológica a que estamos sujeitos todos os espíritos que
encarnamos na Terra e que temos, nessa função, o meio programado pela natureza
para a nossa reprodução. Como decorrência, existe a atração sexual, de natureza
biopsíquico-espiritual, e também o afeto - daí o termo homoafetividade - que se
traduz nas ligações afetivas que se estabelecem entre as pessoas, e que não se
interrompem quando elas passam de uma para outra existência física.[2]
Como os espíritos podem encarnar em corpos masculinos
ou femininos, o modo como a sua sexualidade se manifesta está muito mais ligado
aos seus ascendentes espirituais que à sua fisiologia. Tanto Allan Kardec
quanto Emmanuel atribuem à transição de um para o outro sexo, no processo da
reencarnação, o fato de a atração sexual poder dar-se tanto entre pessoas do
sexo oposto quanto entre pessoas do mesmo sexo. Uma pessoa que reencarnou em
uma experiência sexual diferente da anterior viveria um natural processo de
adaptação a essa nova realidade,[3]
o que pode se estender por um tempo maior ou menor, dependendo das
circunstâncias e das disposições psíquicas de cada espírito. É assim que ele
pode apresentar atração sexual por pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo, de
ambos os sexos ou não sentir atração sexual por ninguém, a depender, inclusive,
de como ressurgem na existência atual as suas vinculações afetivas anteriores.
Dessa complexidade emerge uma variedade de conformações de gênero, o que levou
Emmanuel a afirmar que "o homem e a mulher serão, desse modo, de maneira
respectiva, acentuadamente masculino ou acentuadamente feminina, sem
especificação psicológica absoluta.[4]
Há dois casos[5]
que podem ilustrar o modo como a bissexualidade se manifesta. O primeiro deles
é o de um amigo, palestrante espírita de invejável segurança doutrinária e
conduta irrepreensível, que já foi casado, teve filhos, mas que não conseguiu
manter a união por mais tempo. Separaram-se consensualmente e ele estabeleceu
uma segunda união, desta vez homoafetiva, com outro homem, portanto. Depois de
quase dez anos nessa convivência, ele novamente se separou e estabeleceu uma
terceira união, agora, de novo, com uma mulher. Como o caso é recente, nós,
amigos do casal, estamos todos torcendo para que eles consigam se sentir
realizados e felizes.
O outro caso é antigo, e foi o que primeiro me
estimulou a pesquisar o assunto sob a ótica do Espiritismo. Semelhante ao
primeiro, também envolve pessoa espírita, dedicada, generosa, exemplo de ser
humano. Trata-se de uma amiga que viveu uma primeira relação heteroafetiva, da
qual teve uma filha. Depois de um processo de separação ela viveu por um tempo
solteira, mas terminou por estabelecer uma nova relação, desta vez homoafetiva,
com outra mulher. Essa relação durou alguns anos, até quando ela conheceu outro
homem com quem estabeleceu o seu terceiro relacionamento, agora em outra
relação heteroafetiva, da qual teve mais um filho. Faz mais de vinte anos que
ela e seu marido vivem muito bem essa sua terceira união.
Como se vê, não há nenhuma razão, sob um olhar
espírita, para qualquer estranhamento em relação à bissexualidade, como também
a outras manifestações de gênero, de vez que, de acordo com Emmanuel, a questão
tem a ver muito mais com os “preconceitos da sociedade, constituída na Terra
pela maioria heterossexual, do que com as verdades simples da vida”.[6]
E quando entram em cena os “preconceitos da sociedade” a questão assume um
caráter de gravidade, que passa a requerer a nossa atenção enquanto pessoas
espíritas pelo quanto de sofrimento e de tragédia esses casos acrescentam ao
cotidiano humano.
Mesmo com tudo isso tão evidente, chama a atenção o
intencional silêncio que as pessoas LGBT se veem constrangidas a adotar no
ambiente da casa espírita, porque não se sentem à vontade para expressarem em
nosso meio os seus sentimentos, tidos quase sempre como “reprováveis”. Por
falta de uma maior compreensão dos aspectos psicológicos envolvidos, é comum no
meio espírita pessoas LGBT[7]
serem julgadas como “pervertidas", "imorais" ou
"promíscuas", simplesmente por manifestarem alguns aspectos mínimos
da sua identidade de gênero. Muitas vezes elas deixam de participar das
atividades espíritas simplesmente porque as pessoas heterossexuais, que são
maioria, não aceitam que elas sequer se apresentem como são. No mínimo exige-se
delas um pacto de silêncio e uma fachada de falsidade, como se a questão não
existisse, numa atitude de puro preconceito disfarçado de moralidade.
Recentemente repercutiu nas redes sociais uma
entrevista concedida por um conhecido palestrante e escritor espírita que
associou bissexualidade a promiscuidade, dizendo ainda que “a coisa tá partindo
pra bandalheira”. Demonstrando total desconhecimento do assunto, ele acusou as
pessoas bissexuais de promoverem “apologia ao corpo” e de “sexualização” das
relações, no que foi criticado por pessoas que se sentiram ofendidas com esses
julgamentos. Ao final ele se mostrou ainda mais preconceituoso ao afirmar que
assuntos envolvendo “negros, pobres, homossexuais” são “ativismo”, e que se
referem apenas ao corpo, não tendo nenhuma relação com o espírito. É como se o
"normal" fosse ser branco, rico e hétero, e o contrário, meras
anomalias. Estas são pautas, disse ele, que “fomentam brigas”, e por isso devem
ser evitadas, mesmo que ele mesmo não as tenha evitado e tenha se sentido no
direito de opinar sem nenhum conhecimento do assunto.
Todos sabemos que a "apologia do corpo" não
é um apanágio das pessoas LGBT, sendo até mais comum entre pessoas
heterossexuais. Uma visita a qualquer academia de ginástica ou um passeio em um
shopping center deixa isso bastante evidente. O mesmo se verifica quanto
à "sexualização das relações", muito mais presente nas uniões heteroafetivas.
Basta um olhar para a sucessão de outdoors espalhados pelas cidades,
exibindo corpos sensuais como meio de estimular a venda dos mais variados
produtos e serviços, para perceber que a questão é bem mais complexa. Quanto às
“brigas” que ele alega, são nada mais nada menos que as justas reações de
indignação das pessoas que se sentem agredidas por manifestações de preconceito
como as que ele cometeu. Se todos respeitassem o direito alheio de se expressar
e de viver como são essas “brigas” não existiriam. O mais grave é que, como
existe o preconceito, para muito além de simples “brigas” os insultos se
transformam em agressões verbais, que às vezes evoluem para agressões físicas e
até mesmo para assassinatos, colocando o Brasil em uma triste posição de país
que mais assassina pessoas LGBT todos os anos.[8]
Somente no ano passado o preconceito que os seus comentários alimentam foi a
causa de 224 assassinatos e de mais 13 suicídios.[9]
Outro importante palestrante espírita, médico,
abordou o assunto utilizando como base para os seus argumentos as disposições
fisiológicas dos seres humanos e, como era de se esperar, todo a sua carga de
preconceito. Alegando uma falsa cientificidade, ele inclusive acusou de
"ativismo" os pesquisadores que chegam a conclusões diferentes das
suas por integrarem perspectivas sociais ou psicológicas como a emoção e o
afeto, ou até mesmo aspectos espirituais, em uma arrogância científica
incompatível com o espírito de abertura que a doutrina espírita nos propõe.[10]
Estudar essa temática à luz do entendimento espírita
implica levar em conta os recentes estudos desenvolvidos por pesquisadores
respeitáveis em todas as áreas do conhecimento humano, e não apenas na
fisiologia, sem o que é impossível manter o Espiritismo sintonizado com o
pensamento científico da atualidade, como propunha Kardec. Examinar a questão
por todos os ângulos antes de emitir uma opinião, ouvir as próprias pessoas que
vivem essas experiências, muitas delas espíritas dedicadas, como nos casos
acima, lançando um olhar espiritual para o assunto, de modo a fazer frente ao
preconceito, que é causa de sofrimento para muitos espíritos quando de sua
travessia pela experiência terrena. O objetivo final precisa ser,
necessariamente, propiciar a todas as pessoas, de todos os gêneros, conforme
pondera o espírito Emmanuel, “atenção e respeito, em pé de igualdade ao
respeito e à atenção devidos às criaturas heterossexuais”, até porque, nas
palavras dele, “a aplicação do sexo, ante a luz do amor e da vida, é assunto
pertinente à consciência de cada um”.[11]
[1] Xavier, Chico. Vida e Sexo, lição
21, pelo espírito Emmanuel. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[2] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos,
questões 200 a 202, 217 e 218-a. Ed. FEB, Brasília/DF.
[3] Kardec, Allan. Revista Espírita, Jan/1866
pag.4. IDE, Araras/SP. Xavier, Chico. Vida e Sexo, pelo espírito
Emmanuel, lição 21. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[4] Xavier, Chico. Vida e Sexo, pelo
espírito Emmanuel, lição 21. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ. Importante destacar
que o termo "transexualidade" contido no texto não é atualmente
utilizado com aquele sentido atribuído pelos autores.
[5] Os dois casos tiveram algumas informações
alteradas de modo a proteger a identidade das pessoas envolvidas.
[6] Xavier, Chico. Vida e Sexo, lição
21, pelo espírito Emmanuel. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
[7] LGBT refere-se a Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Transexuais incluindo ainda os gêneros Queer, Intersexuais,
Pansexuais, Assexuais, e outros que possam vir a ser considerados.
[8] https://exame.com/brasil/pelo-12o-ano-consecutivo-brasil-e-pais-que-mais-mata-transexuais-no-mundo/
[9] https://www.poder360.com.br/brasil/relatorio-registra-237-mortes-violentas-de-pessoas-lgbts-no-brasil-em-2020/
[10] https://www.febnet.org.br/blog/geral/noticias/discussao-sobre-genero/
[11] Xavier, Chico. Vida e Sexo, pelo espírito Emmanuel, lição 21 e apresentação do livro. Ed. FEB, Rio de Janeiro/RJ.
*(Sociólogo e pesquisador espírita, colaborador da Fraternidade Espírita, da Aephus – Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais e da Federação Espírita do Estado de Goiás. Autor de Contextualizando Kardec: do séc. XIX ao XXI e de O Processo Mediúnico: Possibilidades e Limites na Produção do Conhecimento Espírita).