20 agosto 2025

Kardec, raça e ciência - Matheus Laureano

                     

 

                  Kardec, raça e ciência, por Matheus Laureano 

Matheus Laureano é  Mestre em Psicologia Social,  escritor, Presidente da     ASSEPE  (www.assepe.org.br).Delegado da CEPA em João Pessoa-PB e membro da CEPABrasil, <mattheuslaureano@gmail.com>

O Espiritismo é uma doutrina em progresso. O Espiritismo também é uma doutrina pedagógica. É preciso considerar essas duas afirmações para um melhor entendimento do Espiritismo, pois se tivermos uma acepção de que o Espiritismo é algo pronto e acabado, não tem o que discutir, melhorar e nem mesmo modificar quaisquer das ideias e teorias espíritas. É uma doutrina pedagógica porque busca, principalmente, a melhoria da sociedade e dos indivíduos por meio da educação, do diálogo e da busca pela verdade.

Assim como os grandes gênios da humanidade, Kardec foi um homem de contradições. Primeiramente há que considerar a Doutrina Espírita uma obra muito mais dele que dos Espíritos desencarnados. Foi ele quem tomou todas as ações de pesquisar, que mensagens deveriam conter nas obras, quais foram os Espíritos escolhidos, quais eram os(as) médiuns de confiança e, mais que tudo, desenvolveu a teoria espírita baseada em seu arcabouço teórico e histórico. A genialidade de Kardec, entre outras coisas, se demonstra na capacidade que ele teve de se deparar com o fenômeno espírita, oferecer uma compreensão de toda a sua magnitude e buscar por toda a sua vida dar corpo pedagógico, tornando-o simples para a humanidade.

Embora tudo isso seja a sua essência, Kardec era um homem inserido em determinado contexto e dele foi prisioneiro também. Em diversas oportunidades ele foi além de seu tempo, tornando o mundo mais palpável e compreensível, uma vez que abriu o véu da obscuridade e trouxe luz aos fenômenos sobrenaturais, naturalizando a realidade espiritual.

Dito estes pontos breves, introdutórios e importantes para o que se segue, vamos ao que nos propomos para esse breve artigo. Antes, quero avisar que o texto é um pouco duro. Não foi fácil escrevê-lo. Tenho em Kardec uma admiração gigante, foi por conta dele que o espírito crítico se iniciou em mim, assim como a vontade de estudar e ler ainda mais. Não foi fácil quando descobri que Kardec foi racista e isso já tem mais de 20 anos, e depois de um tempo refletindo consegui compreender que somos todos seres em evolução e a única coisa de Kardec que morreu em mim, foi a sua sacralização, e nasceu um ser incrível e cheio de contradições, assim como todos nós.

Kardec foi racista! Sim, Kardec foi racista e isso tem um grau importante (e devastador) em sua obra. Quem estuda Kardec em seus livros e textos, percebe que tudo sempre foi pautado pela fraternidade e entendimento de que a educação é o meio de transformação da sociedade; sempre buscou o respeito, a igualdade, a liberdade e tudo o que pode engrandecer a vida humana. Um humanista nato. No entanto…

O primeiro texto (1) que exemplifica o racismo de Kardec é intitulado “A Perfectibilidade da Raça Negra”, foi publicado na edição de abril de 1862, da “Revue Spirite”. Esse texto é uma busca, por meio da Frenologia, de inserir a sociedade europeia como o suprassumo do progresso humano à sua época. Eu poderia dizer, como muitos já tentaram, que foi uma tentativa de compreender as diferenças sociais por meio da Frenologia, mas como verão adiante, Kardec vai deixar claro a sua predileção pela exaltação à sociedade europeia, mesmo que lance mão de ideias absurdas.

Nesse referido texto (2) diz Kardec: “Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos. Como Espíritos, são inquestionavelmente uma raça inferior, isto é, primitiva. São verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já representa um progresso que levarão para outra existência, e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório de melhores condições”.

A maneira como Kardec se refere aos negros, assemelha-se a alguém relatando que está levando um cachorro a um centro de adestramento para modificar alguns hábitos e se comportar de acordo com o que estabelecemos como norma de conduta. Trazendo para uma perspectiva de pensamento contemporâneo, há uma desumanização do negro, em que se assemelha a animais que precisam ser domados para viverem em sociedade.

Em outro trecho do mesmo texto (3), ele diz: “[…] a raça negra, enquanto raça negra, corporalmente falando, jamais atingirá os níveis das raças caucásicas, mas como Espíritos é outra coisa: pode tornar-se e tornar-se-á aquilo que somos. Apenas necessitará de tempo e de melhores instrumentos. Eis por que as raças selvagens, mesmo em contato com as raças civilizadas, ficam sempre selvagens. Entretanto, à medida que as raças civilizadas se desenvolvem, as selvagens diminuem, até o desaparecimento completo, como desapareceram as raças dos caraíbas, dos guanches e outras. Os corpos desapareceram, mas em que se transformaram os Espíritos? Alguns talvez se achem entre nós”.

Como se diz no ditado popular, Kardec “morde e assopra”. Ao mesmo tempo em que rebaixa os negros indicando que nunca alcançarão a evolução espiritual dos brancos enquanto encarnados em corpos negros (por conta da constituição física), coloca um fio de esperança na evolução espiritual, que é se transformar em um europeu com as sucessivas reencarnações, branqueando a raça negra até o ponto em que ela desapareça. Eugenia! Vale salientar que essa ideia de branqueamento da população negra foi muito recorrente no século XIX, inclusive no Brasil, em que o governo incentivava a miscigenação e a vinda de europeus para ocupar o Brasil para branquear a população no intuito de ela se parecer mais com a europeia. Além de cruel, evidencia uma percepção muito rasa e racista acerca das diferentes culturas.

Kardec ou não sabe, ou esconde o processo de desaparecimento de sociedades nativas pelo mundo por meio de matanças perpetradas pelos caucásicos europeus em busca de expandir seus comércios e de dominar o mundo por meio da força e da escravidão. A escravidão existia também na África, mas nenhum povo foi capaz de tornar a escravidão a maior fonte de renda do que o Cáucaso. Com a dominação europeia os povos nativos eram mantidos em escravidão e os brancos surravam, estupravam, matavam e torturavam diariamente para manter a produção, enquanto em casa rezavam com a bíblia próximos a uma mesa farta, produto dos seres humanos escravizados e famintos que sofreram de tudo para que o cristão branco europeu pudesse deitar a cabeça tranquilamente todas as noites. O civilizado branco foi o principal responsável pelo extermínio de dezenas de povos nativos pelo mundo.

Neste ponto, Kardec sofria ou de uma ignorância imensa, ou de um eurocentrismo patológico que não o deixou enxergar além do centro de Paris. Digo isso porque várias pessoas ao escreverem sobre o racismo de Kardec pensam que Kardec nunca viu um negro, que não havia negros na França, que só se sabia de notícias, mas é um ledo engano.

Os negros estão na Europa desde o final do século XV, não somente como serviçais, mas também em outras profissões e sendo recebidos com respeito e honraria quando enviados por franceses brancos de suas diversas colônias. Em 1687, o rei Luís XIV recebeu um negro, designado por franceses dominicanos dizendo que se tratava de um herdeiro do trono do reino de Assine (Costa do Marfim, África). Tratado com honra real, ele foi batizado pelo bispo Bousset e teve como padrinho o próprio rei. No final do século XVIII alguns poucos negros eram enviados à Europa para estudar ou terem treinamento religioso (4). Além disso, era muito comum as famílias ricas terem serviçais negros(as) para todos os tipos de trabalho. Então, Kardec não somente viu negros(as), mas teve oportunidade de conhecer, conversar e aprender sobre as sociedades africanas, pois a presença negra na França era comum.

Em agosto de 1864, na “Revue Spirite”, Kardec também toca no assunto sobre a superioridade da raça branca sobre as demais raças (5). Na “Revue Spirite”, de fevereiro de 1867, na seção variedades, Kardec dispõe acerca de um homem negro, cego e escravo que tinha aptidão de tocar qualquer música, uma vez tendo-a escutado. Desde músicas populares até as mais difíceis músicas clássicas. Para dar explicação à luz da Doutrina Espírita, Kardec diz que “como a raça negra em geral, e sobretudo no estado de escravidão, não brilha pela cultura das artes, há que concluir que o Espírito de Tom não pertence a essa raça, mas que nela se encarnou como expiação ou como meio providencial de reabilitação dessa raça”. Mais adiante diz também que a Lei da Reencarnação vem trazer a fraternidade universal e que é inconcebível que haja preconceito contra qualquer pessoa (6).

Em “A Gênese”, Kardec utilizava como sempre, do conhecimento científico da época e discorre dizendo que a espécie humana não teve um só princípio, mas diversos e espalhados pelo globo. Exemplifica isso falando que as “diferentes” raças tiveram origens próprias e de forma simultânea ou sucessivamente em diferentes partes do mundo (7). Até para criticar a versão bíblica acerca de Adão, Kardec diz que “Não se conceberia, pois, que esse tronco tenha tido como descendentes povos numerosos e tão atrasados, de uma inteligência tão rudimentar, que beiram, ainda em nossos dias, a animalidade” (grifos nossos).

Então, vamos refletir um pouco… Kardec dizia que a raça negra estava na infância espiritual, e em “A Gênese” diz que as raças surgiram simultaneamente ou sucessivamente. Isso quer dizer que o corpo negro é destinado exclusivamente às primeiras encarnações? Ou que Espíritos escolhem ou são levados a reencarnar em corpo negro por não ter inteligência e moral suficiente para encarnar em um corpo branco? Ou que Deus escolheu corpos para sofrimento e corpos para desfrutar da inteligência e da vivência com pessoas moralmente superiores?

Em que tudo isso importa? Vamos começar pela influência dessas palavras de Kardec no movimento espírita. É ainda recorrente centros espíritas que não aceitam ou aceitam com ressalvas comunicações de pretos velhos, índios e outros espíritos que se apresentam de maneira não convencionada como de confiança. Os espíritas fazem esforços para se aproximar das religiões cristãs, ainda que contra a vontade das igrejas cristãs, ao mesmo tempo que fazem esforços para se distanciar das religiões de matriz africana, mesmo elas guardando algumas semelhanças e sendo mais abertas que as cristãs. É comum os centros espíritas apoiarem as artes que tenham influências europeias, como grupos harmônicos, balés, corais, mas dificilmente apoiam grupos rítmicos, danças africanas e cânticos indígenas. O Brasil é formado por cerca de 54% de negros e pardos, mas apenas 30% dos espíritas se identificam como negros e pardos (8). É um movimento branco, de classe média, com renda e escolaridade acima da média do país. Mesmo sendo 30% de negros e pardos, precisamos perguntar: quantos estão em cargos de diretoria em centros espíritas? Quantos estão à frente de Federações Espíritas? Quantos são os palestrantes negros que se destacam, que são estrelas do panteão de palestrantes espíritas?

Muitos vão exemplificar com as exceções, que vem somente a corroborar com o fato de que, também no movimento espírita, há um racismo estrutural.

Além disso tudo, há um fato histórico que exemplifica esta questão. A Umbanda nasceu a partir do preconceito de espíritas, quando Zélio de Moraes foi à Federação Espírita de Niterói porque apresentava problemas de saúde que ninguém sabia curar. Uma vez na mesa mediúnica da referida federação, espíritos de negros escravos e índios se apresentaram, mas foram convidados a se retirar pelo dirigente da reunião por julgar que eram “Espíritos atrasados”. Foi então que se manifestou o espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas, proferindo um discurso de defesa dos Espíritos que se apresentaram, bem como das pessoas que eram discriminadas no Brasil. Comunicou aos presentes na mesa que no dia seguinte seria instalada uma religião que não teria discriminação e que todos seriam bem-vindos (9).

Os diversos movimentos espíritas precisam reconhecer que o racismo estrutural está presente em seu seio, e que tem o dever cívico educar e de lutar contra, além educar a população sobre a espiritualidade, que espírito não tem cor, nem sexo e que não há sacralização de Kardec. Reconhece-se a grandiosidade de Kardec, assim como se deve reconhecer este lapso de caráter nele, que provavelmente pela Lei de Progresso já deve pensar muito diferente de há 150 anos.

Finalmente, Kardec bem antenado ao movimento intelectual de sua época e num esforço para ir além do que se podia, com a descoberta da realidade espiritual e suas consequências, conseguiu ir um pouco além da ciência de sua época nesse ponto, pois não via qualquer raça condenada a opressão, mas numa infância do progresso espiritual. Apesar de tudo, dos pensadores europeus, Kardec provavelmente foi quem teve um olhar menos preconceituoso acerca dos negros. Nós temos um dever cívico de continuar a debater o assunto e construir um espiritismo mais antenado à ciência da atualidade, pois o codificador pensava que “o Espiritismo jamais será superado, pois, se novas descobertas demonstrarem estar em erro em um determinado ponto, ele se modificará sobre esse ponto” (10).

Além da perspectiva científica, é uma questão ética apontar e compreender o racismo em Kardec. Não é aceitável e devemos debater sobre o que fazer com os textos escritos acerca do assunto. Como devem ser as notas de rodapé sobre isso? Apenas explicando que era um pensamento comum à época, ou firmar posição contra essa ideia de Kardec? Eu sou da opinião que as notas de rodapé não podem somente dizer que era um pensamento comum à época dele, mas de afirmar que essas ideias não coadunam com o pensamento espírita atual, que são veementemente repudiadas e que Kardec estava ERRADO, sem medo de dizer. Então espíritas, estamos prontos para modificar esse ponto, ou vamos passar pano em Kardec e ter que dar explicações falaciosas de tempos em tempos?


(1) Não falarei do texto contido em “Obras Póstumas”, pelo simples fato de não ter sido publicado por Kardec e por ele não diferir muito dos que foram contemplados neste artigo.

(2) “Revue Spirite”, abril de 1862.


(3) Ibid.

(4) McCloy, Shelby T. Negroes and Mulattoes in Eighteenth-Century France. The Journal of Negro History, Vol. 30, No. 3 (jul., 1945), pp. 276-292.

(5) “Revue Spirite”, agosto de 1864.

(6) “Revue Spirite”, fevereiro de 1867.

(7) “A Gênese”. Cap. XI, Raça Adâmica. pp. 238-239. Edição conforme o texto original de Allan Kardec da 1ª Edição de 1868.

(8) IBGE. Banco de Tabelas e Estatísticas. “Censo Demográfico”. Disponível em <https://sidra.ibge.gov.br/Tabela/2094>. Acesso em 28. jun. 2022.

(9) Rohde, Bruno Faria. Umbanda, uma Religião que não Nasceu: Breves Considerações sobre uma Tendência Dominante na Interpretação do Universo Umbandista. “Revista de Estudos da Religião”. 2009, pp. 77-96.

(10) “A Gênese”, Cap I, 55, pp 71. Edição conforme o texto original de Allan Kardec da 1ª Edição de 1868.

* Artigo originariamente publicado no Blog da Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa (Assepe).

 


05 agosto 2025

Kardec, Racismo e Iconoclastia - Néventon Vargas

 Kardec, Racismo e Iconoclastia

Por Néventon Vargas: Engenheiro Civil, Licenciado em Física, militar inativo, membro da ASSEPE - Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa -PB e Assessor de Comunicação da CEPA Brasil.

  “Tudo que é dito revela-se mais claro que o não dito.”  (Sócrates)

 

A morte de George Floyd[1] nos EUA, em 25 de maio de 2020, desencadeou uma série de protestos pelo mundo, tendo, inclusive, como alvo inúmeros heróis históricos, cujas estátuas estão espalhadas pelos mais variados espaços em diversos países. Um dos alvos, Winston Churchill (1874-1965), por muitos considerado o principal herói da 2ª Guerra Mundial, cito aqui pela emblemática manifestação do atual premier britânico Boris Johnson:

“Sim, às vezes ele expressava opiniões que eram e são inaceitáveis para nós hoje, mas ele era um herói e merece esse memorial. Nós não podemos tentar editar ou censurar nosso passado. Não podemos fingir que temos uma história diferente” 

Com tal exemplo, nos perguntamos: como fica Allan Kardec no atual contexto? Será também seu túmulo no Père-Lachaise[2] alvo dos protestos? Salienta-se o fundador do Espiritismo como notório racista? Somos iconoclastas ou abominamos desnudar a personalidade dos nossos ídolos?

Não há dúvida que geralmente os adeptos da Doutrina Espírita, especialmente os mais idólatras, não se sentem confortáveis com as declarações manifestamente racistas de Kardec em algumas de suas publicações.

Matheus Laureano, no seu artigo “Kardec, raça e ciência”[3] salienta que apesar de Kardec ter sempre se “...pautado pela fraternidade e entendimento de que a educação é o meio de transformação da sociedade; sempre buscou o respeito, a igualdade, a liberdade e tudo o que pode engrandecer a vida humana. Um humanista nato.”, era, ainda, “...um homem inserido em determinado contexto e dele foi prisioneiro também.”. Assim sendo, tinha a postura eurocentrista e colonialista, comum do seu tempo e espaço, tratando o negro como inferior, desumanizando-o, assemelhando-o “... a animais que precisam ser domados para viverem em sociedade.”.

Em uma perspectiva parece demasiado rigorosa a condenação de seres humanos que viveram no passado, tendo como parâmetros os valores e a consciência amealhados gradativamente com o passar do tempo até o presente. Por outro lado, também não é eticamente aceitável ignorar a realidade e deixar de enfrentar a questão inegável de que Kardec defendeu a superioridade do europeu branco em relação ao negro africano, conforme as referências transcritas no artigo acima citado. Não há como negar! Kardec teve ideias racistas!

Em defesa do insigne mestre Rivail, alguns espíritas dizem que o texto “Teoria da Beleza” inserido em “Obras Póstumas” não foi escolha dele a sua publicação. Esse argumento, entretanto, me parece pueril e sem muito sentido, pois, salvo o caso de alguma possível adulteração, a simples existência de ideias colocadas no papel demonstra como pensava Kardec na intimidade, independentemente de terem ou não sido publicadas.

O fato é que, conforme expressou Boris Johnson, o passado não pode ser editado e não podemos fingir que temos uma história diferente. Podemos, entretanto, reconhecer as sujeições de Kardec aos limites paradigmáticos do seu tempo, sendo ele um ser humano falível como todos nós. Não há razão para “santificá-lo” ou “idolatrá-lo”, ainda que em muitos aspectos ele tenha conseguido superar modelos vigentes em sua época. Vencido esse obstáculo podemos e devemos atribuir-lhe todos os créditos pelo trabalho incansável, realizado nos últimos 12 anos de sua vida em prol de uma filosofia libertadora, progressista e profundamente humanista.

Não há mais nos nossos dias espaços para tergiversações!

O Espiritismo fundado por Allan Kardec foi um movimento vanguardista em meados do século XIX, mas que lentamente se avolumou e se estruturou muito mais em torno de instituições religiosas e, consequentemente, conservadoras, que tendem a rejeitar toda e qualquer manifestação crítica às ideias do “codificador” e dos espíritos que o assessoraram.

Com o recrudescimento do extremismo conservador no mundo todo, impõe-se aos movimentos espíritas progressistas que gravitam, como alternativa, em torno do religiosismo, firmes posicionamentos sobre a cristalização do racismo individualista, institucional e estrutural, conforme vêm concluindo as ciências sociais, embora Silvio Almeida[4] diga que “o racismo é sempre estrutural” e explica, “é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”.

Concluindo, ainda que Kardec tenha nos legado alguns escritos racistas; ainda que estátuas de ídolos históricos tenham sido depredadas pelo mundo a fora e outras escondidas para protegê-las, precisamos escancarar o que sabemos e está explícito na personalidade do nosso mestre, a fim de purgar o próprio Espiritismo de suas mazelas, buscando estruturá-lo de forma sempre dinâmica e progressista para enfrentar os desafios que se avizinham, diante da célere evolução intelectual, tecnológica e social.

Despir nossos ídolos, dirá muito mais de nós do que deles mesmos!

 

[Artigo publicado no Jornal Opinião 288, de setembro de 2020]

 



[1] Conhecido como Big Floyd — nome que representa seu grande porte físico —, George Perry Floyd Jr. foi um homem afro-americano, 46 anos, que foi assassinado em Minneapolis, Minnesota, no dia 25 de maio de 2020, estrangulado por um policial branco que se ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem por supostamente usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado. (https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/quem-era-george-floyd.phtml).

 

[2] Cemitério Père-Lachaise, uma das atrações turísticas mais visitadas de Paris, com mais de dois milhões de visitantes por ano, é o local em que está a sepultura de Allan Kardec. (http://diretodeparis.com/pere-lachaise-o-cemiterio-mais-famoso-do-mundo/)

 

[4] Almeida, Silvio Luiz de – Racismo Estrutural (Feminismos Plurais). Introdução. São Paulo. Polen, 2019.

30 julho 2025

ESPÍRITAS PROGRESSISTAS DENUNCIAM MASSACRE EM GAZA

           


ESPÍRITAS PROGRESSISTAS DENUNCIAM MASSACRE EM GAZA

NOTA PÚBLICA DE REPÚDIO


Nós, os coletivos espíritas abaixo assinados, manifestamos nosso mais veemente repúdio às ações violentas e covardes das Forças Armadas de Israel que, sob o comando do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, vêm promovendo um verdadeiro genocídio na Faixa de Gaza. É profundamente comovente e revoltante assistir à morte de civis — incluindo crianças — por fome, sede e bombardeios, além de relatos gravíssimos de pessoas sendo alvejadas enquanto buscam alimentos. 

Diante desse cenário de barbárie, apelamos à Organização das Nações Unidas (ONU) e a todos os países democráticos e comprometidos com os direitos humanos para que se unam com urgência no esforço de cessar tais crimes de guerra. Que o governo de extrema-direita de Israel seja responsabilizado internacionalmente, e que o mundo se erga contra todas as formas de massacre, terrorismo e desumanização.

Reafirmamos, como herdeiros do legado de Allan Kardec, a defesa da paz, do diálogo entre os povos, do fim imediato dos ataques e da entrada de ajuda humanitária em Gaza. Isso é caridade em sentido macrossocial. 

Por uma Palestina livre onde todos possam viver com dignidade e justiça!

 

                                                                Publicado em 28 de julho de 2025

Assinam esta Nota:

1.      Associação Brasileira de Delegados e Amigos da CEPA (CEPABrasil) – Santos/SP

2.     Associação Brasileira Espírita de Direitos Humanos e Cultura de Paz (ABREPAZ) – Goiânia/GO

3.      Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa (ASSEPE)

4.      Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (AEPHUS) – Goiânia/GO

5.       Canal Cavanhaque de Kardec – Rio de Janeiro/RJ

6.       Canal You Tube Armas de Minerva – Rio de Janeiro/RJ

7.        Canal YouTube Suzana Leão – Novo Hamburgo/RS

8.        Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA)

9.        Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDOC) – Santos/SP

10.      Centro Espírita Herculano Pires (CEHP) – Rio de Janeiro/RJ

11.      Coletivo Ágora Espírita – Recife/PE

12.      Coletivo de Estudos Espiritismo e Justiça Social (CEJUS)

13.      Coletivo Espírita Maria Felipa – Salvador/BA

14.      Coletivo Girassóis - Espíritas pelo Bem Comum – Fortaleza/CE

15.      Cultura Espírita Livre-Pensar (CELP) – Curitiba/PR

16.       Espíritas à Esquerda (EàE) – Salvador/BA

17.       Fraternidade Espírita – Goiânia/GO

18.       Fronteiras do Pensamento Espírita – Goiânia/GO

19.       Grupo Espírita Livre Pensar (GELP) – Santos/SP

20.       Movimento Mundial de Mulheres Espíritas (MOVMMESP)

21.       Movimento pela Ética Animal Espírita (MOVE) – Rio de Janeiro/RJ

 

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20 julho 2025

Novo Pensar sobre o Mundo, capítulo 10 do livro: “Novo Pensar sobre Deus, Homem e Mundo” - Jaci Regis

Novo Pensar sobre o Mundo, capítulo 10 do livro: “Novo Pensar sobre Deus, Homem e Mundo”

 
Homenagem póstuma ao querido pensador espírita Jaci Regis, nascido na data de 30/10/1932 em Florianópolis e desencarnado no dia 13/12/2010, em Santos. Nossa gratidão e reconhecimento por seu legado ao espiritismo humanista, livre pensador, plural e progressista. 


 Gosto de pensar o mundo de forma positiva, mas não ingênua. 
 Passam pela mente o alarido das crianças, as campinas floridas, o amor entre as pessoas, a música, a paciência dos educadores, o trabalho silencioso e persistente dos pesquisadores, os benefícios da ciência e da tecnologia. Vivi pessoalmente grandes transformações tecnológicas que impulsionaram mudanças dramáticas no comportamento humano. 
 Vi explodir a liberação da mulher, a pílula anticoncepcional liberando o sexo feminino. Acompanho a expansão da vida corpórea, com base na saúde pública, na infraestrutura do saneamento básico. 
Na ascensão econômica de milhões. Não desconheço a multidão dos problemas, o terrorismo erguido como arma política e em nome de Deus. 
A miséria humilhante de milhões de pessoas em todo o mundo e principalmente na África. Individualmente cada pessoa, em qualquer parte, procura a felicidade, às vezes travestida em delinquência. Vivemos o mundo globalizado, interligado pelos meios de comunicação. 
A aldeia global se materializa pela internet, pelas comunicações via satélite. 
 Estamos no olho do furacão das notícias e informações de todas as partes, sofrendo as dores e os temores de todos os seres humanos espalhados pelo mundo afora. 
Tamanha carga de emoções exige um redimensionamento da mente, da percepção, da capacidade de priorizar, de decidir, de escolher. De ouvir e não ouvir. De ver e não ver. De falar ou calar. 
 As aldeias primitivas se transformaram em cidades, em metrópoles, em megalópoles. As distâncias se encurtam. 

 O papel das religiões 

 Apesar das mudanças fenomenais, podemos ainda dividir o mundo conforme a predominância dessa ou daquela religião. 
Se algumas religiões estão muito marcadas numa região, como o budismo, o hinduísmo e as religiões chinesas, por exemplo, o islamismo se distribui em muitas partes. Segundo estatísticas, o número de ateus e livres pensadores, principalmente no mundo ocidental, é expressivo. 
Mas a quantidade de profitentes das várias religiões é muito grande. 
Pode-se afirmar que cerca de 70% da população mundial tem ou é adepto de uma religião. 
Embora nominalmente, as igrejas cristãs continuem com milhões de fiéis, na prática, a quantidade de adeptos que frequentam, participam dos cultos é cada vez menor. 
 O que, entretanto, é notório, é a perda da força das igrejas como elementos determinantes da moral social. 
Nos países islâmicos a disciplina religiosa é férrea e seus 94 governos autocráticos e teocráticos estabelecem leis que inibem quaisquer tentativas de mudanças nos rituais e ordenações. Nos países ocidentais o laicismo estabeleceu novas regras. 
No seio das igrejas mais tradicionais dessas crenças ou paralelamente a elas, surgem movimentos fundamentalistas, que pretendem radicalizar a crença ou obstar o progresso, que atraem um público expressivo. 
A verdade é que as religiões em toda a história, são movimentos organizados para exercer o poder. Promovem a fé, mas não a espiritualidade. 
Através do culto exterior, das ordenações, exaltam a profusão da fé sem fundamento espiritual. Atendem aos desejos de uma grande parte que se sente mais ou menos desprotegida dos seus deuses. 
Os crentes querem receber benefícios e já não falam das bem-aventuras depois da morte, mas o bem-estar, a pujança, a riqueza aqui e agora. 
São meras distorções e atualizações convenientes das tradições. Perante o quadro de deterioração da crença religiosa ancestral, essas novas táticas se apresentam como uma espécie de boia de salvação da tentativa do ser humano de permanecer na tona nesse mar de indefinições. 

 Modelo “civil“ ou direitos humanos 

 É importante assinalar que o domínio absoluto das normas morais e éticas das religiões e, no que nos toca, do cristianismo, permitiu que se disseminassem conceitos cruéis de discriminação humana. 
 Sob o modelo cristão, floresceram a escravidão, a inferioridade da mulher, se adotou e aceitou legal e moralmente que determinadas raças eram inferiores às outras e que podiam ser exploradas. 
 No século vinte, sacudido por duas grandes guerras e, principalmente depois de 1945, com a criação da ONU – Organização das Nações Unidas, o pensamento laico, humanista, se impôs e em 1948 foi lançada a Declaração dos Direitos Humanos. 
A Declaração é uma ordem moral universal, estabelecendo princípios que a maioria deseja para permitir uma relação de dignidade e respeito pela pessoa humana em qualquer parte do mundo. 
É uma relação de princípios que as nações decidiram aceitar como direitos dos cidadãos, apesar de não serem aceitos ou totalmente aplicados principalmente nos países de estrutura não democrática, dominados por religiões extremistas. 
Na verdade, muitos dos princípios são declaradamente contrários às práticas determinadas pelos regimes teocráticos e ditatoriais e pelas igrejas dominadoras. Apesar das grandes falhas e dificuldades essa Declaração está como desafios que, todavia, só serão implementados conforme as religiões forem superadas com seus dogmas e ordenações tradicionais. Através da Declaração existe a proposta de criar uma sociedade relativamente igualitária. 
Primeiramente com a força das leis e, posteriormente como normas de vida. Os esforços para implantar o respeito aos direitos humanos representam uma derrota para os modelos criados pela teologia de todos os tempos. 

 Um novo olhar sobre a moral 

 A moral é mutável. Representa o desejo ou a aceitação tácita de comportamentos que mobilizam as pessoas e estabelece um quadro de compensação social. 
É por isso que os mais antigos se referem “ao seu tempo” como melhor, mais equilibrado e respeitoso. A juventude atual é responsabilizada pela aparente desarticulação do ambiente contemporâneo, mais permissivo, mais revolucionário. 
 A variedade evolutiva dos Espíritos que constituem a humanidade encarnada e desencarnada do mundo permite uma análise menos extremista do ser humano. 
 Os valores morais estabelecidos pela cultura são basicamente válidos. Entretanto, há uma perversão de conceitos ao se criar certos padrões que não ajudam o crescimento das pessoas. 
A espada sobre a cabeça criada pelos conceitos religiosos de culpa e pecado cria uma situação contraditória. De um lado há a tentação de infringi-los, contrariara-los. 
De outro a tensão interior dos que aceitam ou admitem esses critérios e se vem chocados com suas realidades e desejos. 
 A transformação da divindade em tribunal é uma invenção das religiões. 
Elas se esmeram em apresentar uma imagem da divindade como reativa, punitiva, sujeita a humores. A divindade cria, expande e mantém a vida para a felicidade e não para a dor. 
 Então, por que as pessoas sofrem? Quem determina a dor, a doença, a opressão, a miséria? Devemos superar a tentação de simplificar o quadro das realidades do sofrimento humano, com explicações convenientes, como a exigência de pagamento de supostas dívidas do ser humano com Deus. A compreensão ampla da vida do ser espiritual, no roteiro de repetição, reajuste e prosseguir apesar de tudo, que caracterizam a humanidade, indicam que todos os mecanismos da vida estão à nossa disposição para crescer, superar e, finalmente, ser feliz. Partindo do princípio de que Lei Natural não é moral. Temos elementos para um novo olhar sobre o porquê da vida e a natureza evolutiva do ser humano. 
Essa visão diferenciada não pretende justificar o que cada pessoa sente em si mesmo, mas dar uma explicação plausível para o quadro tão disforme e tão conflitante da humanidade. 
Não estamos falando propriamente das diferenças culturais, sociais, mas não desconsideramos a influência desses fatores na relação da pessoa consigo mesma, com o próximo e com o social, de modo amplo. Certamente as restrições, as superstições, enfim, todo o aparato místico-religioso serviu e serve ainda como limite para nortear ou pelo menos condicionar o pensamento, o comportamento humano. E, também, para provocar revolta e decepções. 
Se os valores são eleitos, admitidos, absorvidos, servem de parâmetro para a moral, para dizer que isso ou aquilo é certo ou errado. 
Embora não haja possibilidade de entender todas as nuances da vida, nada na natureza autoriza o modelo de pecado e punição secular. Essa condição tem sido um peso muito grande na consciência e não se pode desprezar a importância dos valores auto estabelecidos. 
Freud disse que ninguém foge de si mesmo. 
Então não se trata de dizer que não há culpa, pois ela existe. 
 O que não há é o pecado, porque não existe essa relação de infração da Lei. 


 A afetividade, ruína e ascensão 

 A descoberta do outro, gera paixão. Aí começa toda a trama da afetividade, da noção de identidade e os conflitos da posse, do poder, do amor, do ódio. Ou seja, toda a gama afetiva que a relação humana desenvolve gera e transforma. 
A relação afetiva produz uma cadeia de elos que ligam as pessoas entre si. 
O processo reencarnatório exprime essa polarização através das reações e ações passionais, carinhosas ou agressivas que compõem a realidade das relações humanas. Essa confusa sequência de relações está inserida no livre arbítrio que permite agir com certa, porém não infinita liberdade. 
Porque a lei de causa e efeito estabelece a reciprocidade de ações, de modo que o equilíbrio será, ao final, encontrado para que haja possibilidade de vivência produtiva. 
Por isso, o aparente caos nas relações humanas é um processo rotatório, dinâmico. Revisado constantemente, resulta numa forma de coexistência, abre oportunidade de resolução das questões internas que desiquilibram o Espírito, possível principalmente pela mobilidade que a encarnação e reencarnação possibilitam. 
O ciclo – nascer, viver, morrer, renascer – é o vetor que possibilita, pelo choque que promove, a renovação de estados mentais depressivos, confusos e maldosos. Embora, a dor, o sofrimento, amor e ódio, sejam próprios do Espírito em qualquer plano em que exista, é na vida corpórea que, devido à renovação das personalidades, encontram um espaço concreto e efetivo de resolução. 
Somente essa perspectiva poderá dissolver a aparente contradição entre livre arbítrio, como instrumento de expansão e evolução do ser inteligente e a Lei. Isto é, não existem limites morais na Lei. 
Os limites não estão fora, mas delineados e funcionam inevitavelmente dentro do universo pessoal, nos mecanismos dos condicionamentos e choques de valores como medo, o poder e todos os demais processos de vivência e conflito que o Espírito enfrenta. Entretanto, onde buscar inspiração para o comportamento? 
Nas lições do evangelho, Allan Kardec buscou a inspiração segura para o desenvolvimento ético e moral que o Espiritismo propõe. Junto e além de qualquer lição moral ou de evangelização, o que importa, sobretudo, é que a noção de imortalidade se estabeleça como parte da estrutura do ser humano. A perspectiva real da imortalidade é o caminho da elevação pessoal e social humana. 
Não há lugar para um salvador. Mas, positivamente, tem lugar para as lições de Jesus de Nazaré, e de todas as lições de profetas e reveladores que constituem o conjunto de elevação pessoal, em direção ao equilíbrio mais amplo de si mesmo. 
A Terra é azul, gira no silêncio do cosmo cumprindo o seu roteiro. 
Cada uma das pessoas gira em torno de si mesma em busca do outro. Isso é vida e vida dinâmica, que inclui dor, alegria, lágrimas e sorrisos. Mas somente a persistência do ser que cada um é, além da morte e antes do túmulo será o sinal para uma nova etapa da humanidade.

05 julho 2025

HUMANOS, SOMENTE HUMANOS - Maurice Herbert Jones

 

HUMANOS, SOMENTE HUMANOS

Postamos este artigo como homenagem póstuma ao querido Maurice Herbert Jones, pensador espírita desencarnado em 20/06/2021, aos 92 anos. Com nossa gratidão pelo legado ao espiritismo livre-pensador, humanista, plural e progressista.


Maurice Herbert Jones, ex-Presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul; ex-Presidente do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre; ex-Assessor Especial da Presidência da CEPA. 

“O homem é a única criatura que se recusa a ser o que ela é”. 
Albert Camus

       O enorme contingente de criaturas que, em todo o mundo, se dedica com amor a atividades de promoção do ser humano nos convida a fazer uma reflexão sobre nosso papel e, sobretudo, sobre a inspiração e os motivos que nos levam a trabalhar e a sofrer por ideais de natureza filosófica, política ou religiosa buscando, consciente ou inconscientemente, aperfeiçoar o que nos parece imperfeito, participando assim da construção de um mundo que possa ser mais amado. Por que fazemos o que fazemos? Por que ao invés de somente viver e sobreviver, aceitando obedientemente o cenário e o texto que nos é oferecido, resolvemos desobedecer e sonhar e plantar jardins, construir tambores, flautas e harpas, escrever poemas, construir casas, teatros, universidades, cidades?

   Isto faz de nós, realmente, criaturas singulares no concerto da natureza que conhecemos. Diferentemente dos animais, perfeitamente ajustados ao mundo físico, os homens parecem ser, constitucionalmente, desadaptados ao mundo tal como ele lhes é dado.

   O psicanalista e escritor Rubem Alves, que nos inspira nesta reflexão, diz que uma das respostas a este tipo de indagação é que o homem, antes de ser racional, é um ser de desejo. Desejo é sintoma de privação, de ausência e pertence aos seres que se sentem insatisfeitos com o que o espaço e o tempo presente lhes oferecem. Eles sabem que o mundo é uma construção e, portanto, perfectível. Sofremos de uma “nostalgia do futuro”, uma espécie de saudade de um tempo que há de vir que começa no momento mágico, naquele ponto de mutação em que, com o despertar da razão, foi firmado o contrato de parceria com a Inteligência Suprema que inaugurou a história humana.

   Esta é a glória e, ao mesmo tempo, a maldição da condição humana. Na busca deste mundo mais perfeito que os homens desejam, imaginam e, a pouco e pouco, constroem, empenhamos as mais nobres das nossas qualificações morais e intelectuais, mas como contrapartida, temos que enfrentar a maldição da neurose e o terror da angústia, inexistentes no paraíso da natureza infra-humana.   A harmonia original, pré-individualista, é substituída pelo conflito e pela luta, recursos pedagógicos utilizados para desenvolver nossa capacidade de pensar e de amar. A Inteligência Suprema, de certa forma presente no recôndito das estruturas mais sutis da nossa individualidade, não bloqueia e sim estimula, permanentemente, a parceria humana, mesmo quando incipiente e desastrada.

   Somos o que somos porque para isto fomos inteligentemente programados. Viver, viver mais, viver melhor é a legenda que sintetiza todas as motivações humanas.

   Fazemos o que fazemos porque somos humanos, somente humanos.

 

20 junho 2025

Dignidade e Indignação - Milton R. Medran Moreira

 Dignidade e Indignação 
Editorial do CCEPA Opinião de setembro/2013, 
Editor Chefe: Milton R. Medran Moreira                                                                                                  

"A cultura do espírito aumenta os sentimentos de dignidade e de independência." (Herbert Spencer)

          A luta pela dignidade humana nasce da indignação. A capacidade de indignar-se diante da injustiça, da desigualdade, das violações à liberdade, da corrupção, é o combustível que move o indivíduo e as coletividades à efetiva ação por uma sociedade melhor.

          É preciso ter isso presente ao se analisar os movimentos sociais que, neste momento, marcam as relações entre segmentos da sociedade e o poder. Eles são indício do amadurecimento dessa capacidade de indignação que explode, reivindicando mudanças. Quem é capaz de se indignar mostra crescimento de conscientização de seu próprio potencial transformador e se sente estimulado à concreta ação transformadora.

          Mas afoitos, nem sempre e nem todos os jovens levam em conta um aspecto: a democracia, suada conquista que mal começa a se consolidar entre nós, também nasceu e se institucionalizou a partir da indignação e da ação destemida de gerações precedentes. Etapa recente de nossa história institucional, a democracia não será capaz de sobreviver sem a ordem que lhe é elemento indispensável.

          Ao mesmo tempo em que assiste a uma saudável onda de manifestações em prol de inadiáveis melhorias no campo da educação, da saúde, da moralidade pública, a Nação também tem se deparado com lamentáveis cenas de invasão, depredações e vandalismo ao patrimônio público e privado. E esse não é um bom sinal. Retrata a presença entre nós de espíritos que se demoram em estágios de barbárie incompatível com os avanços éticos e sociais já conquistados. Sobra-lhes indignação, mas lhes falta civilidade. Educá-los é tarefa do Estado, da sociedade organizada e de cada um de nós mediante o exemplo e ações positivas em favor do bem.

                  

                     Impulsionar nossas momentâneas e circunstanciais

                     indignações à busca da dignificação integral do espírito

                     humano é tarefa que nos impõe a vida.

         

          A par da inserção social, no setor que melhor corresponda à capacidade individual de cada um, a nós, espíritas, cabe contribuir, fundamentalmente, com o que de melhor e mais genuíno tem o espiritismo: a sua filosofia, sua proposta de compreensão de homem e de mundo. A filosofia espírita é profundamente libertadora. Desperta no indivíduo a consciência de que ele é o primeiro agente da conquista de sua felicidade. E que esta é construção gradual que se estende vidas a fora, nas necessárias etapas do espírito rumo à plenitude. Essa visão gera sentimentos de solidariedade e de corresponsabilidade no progresso do mundo, de seus povos e instituições.

          Impulsionar, pois, nossas momentâneas e circunstanciais indignações à busca da dignificação integral do espírito humano é a tarefa que nos impõe a vida. Mas, isso exige de cada um, ordem, disciplina, obediência às leis, pois que, sem elas, ao invés de nos tornarmos agentes do progresso, estaremos dando margem ao retrocesso que atenta contra as leis da natureza.

17 junho 2025

05 junho 2025

CONTABILIDADE ESPIRITUAL - REINALDO DI LUCIA

 


CONTABILIDADE ESPIRITUAL

Reinaldo Di Lucia, engenheiro, amante da filosofia e dos debates espíritas. Fundador do Grupo de Pesquisas Científicas Ernesto Bozzano e membro do Centro Espírita Allan Kardec (CEAK) de Santos, do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e do Cultura Espírita Livre Pensar (CELP) de Curitiba. Delegado Especial da CEPA.

Qual o objetivo da reencarnação?

Aparentemente, esta é uma pergunta básica no âmbito da doutrina espírita. Afinal, a reencarnação, considerada um dos pilares que sustentam o edifício teórico do espiritismo, é ideia muito debatida em palestras dos mais diversos gêneros, em todos os centros espíritas.

Ocorre que, infelizmente, há um erro de interpretação na razão de ser da reencarnação. O movimento espírita encara-a como sendo uma oportunidade dada por Deus para que os espíritos " resgatem os débitos do passado ", ficando, assim, quites com a lei divina, e prontos para recomeçar sua escalada evolutiva.

Os livros espíritas, especialmente os de autores desencarnados, são pródigos em estórias que exemplificam esta visão: desde cruéis senhores de engenho que, tendo maltratado seus escravos, renascem em absoluta pobreza, sofrendo o escárnio da sociedade até assassinos que devem morrer cruelmente, não faltam casos a exaltar a infalibilidade do velho ditado: aqui se faz, aqui se paga.

Àqueles que buscam um motivo teórico para estes casos é fornecida a explicação da lei de causa e efeito (ou, como é muito comum dizer-se, a lei do karma): uma vez violada a lei de Deus, o efeito é imediato, voltando ao infrator sobre a forma de sofrimento inevitável.

Deve-se ter em mente, contudo, que nada há, na base da filosofia espírita, que justifique a ideia de reencarnação como punição ou mesmo como resgate de faltas do passado. Kardec é claro ao postulá-la como prova, isto é, como oportunidade de o espírito refazer, em outra ocasião, a tarefa que não pode ou não soube realizar a seu tempo.

Mesmo se não se levar em consideração o argumento de autoridade, isto é, deixando de lado o que diz Kardec, a própria razão deveria levar a esta conclusão. A reencarnação como punição nada mais é que uma reedição da pena de Talião, o famoso olho por olho, dente por dente. No fundo, é apenas uma vingança, cujas reações, apesar de diferentes, são igualmente funestas. Na melhor das hipóteses, o espírito reencarnante resigna-se a um destino doloroso, do qual ele não pode fugir, não atuando proativamente em benefício de uma efetiva regeneração íntima. Na pior das hipóteses, a reação é de revolta, atrasando ainda mais o processo evolutivo.

O sofrimento não pode, de maneira alguma, estar previsto na lei natural, como punição inexorável àqueles que a violam. Sofrimento é uma reação pessoal a fatos da vida, estes sim relacionados diretamente às ações de cada espírito, encarnado ou não. Aqueles que conseguem ter uma atitude positiva perante a vida, pouco sofrem; já os que veem no próprio fato de viver um fardo insuportável (oh! vida, oh! azar...) sofrerão sempre, por menores que sejam as vicissitudes por que passam.

Reencarnação é prova, tal como provas há em qualquer escola aqui na Terra. É uma oportunidade fantástica de aprendizado, possibilitando a cada espírito demonstrar, para si mesmo, que pode continuar sua escala evolutiva em outros níveis.

O espiritismo é, por si só, uma filosofia altamente consoladora. Não deve incorporar o sofrimento existente em outras doutrinas, muletas que, a pretexto de ajudar, obstruem o caminho evolutivo do ser. A evolução deve ser feliz e prazerosa, mesmo quando difícil. E isto, quem faz somos nós mesmos

 

20 maio 2025

A LENTA MARCHA DO PROGRESSO Marcio Sales Saraiva

 A LENTA MARCHA DO PROGRESSO   

  Marcio Sales Saraiva - Escrevinhador, sociólogo e coordenador do Centro Espírita Herculano Pires (RJ). É doutor em Psicossociologia (Eicos/UFRJ).

Os seres humanos abandonaram seu “estado de natureza”, com suas organizações sociais primevas, para construir sociedades enormes e complexas, chamadas de “civilizações”.

Para o espiritismo (KARDEC, 2006, questão 776), não podemos confundir esse “estado de natureza” com a chamada lei natural, pois esta é, na verdade, lei de Deus, regendo o funcionamento cósmico. Em “O livro dos espíritos” encontramos dez aspectos dessa lei natural de regulação da vida, e um deles é a chamada lei de progresso.

O progresso humano faz parte dessa lei natural ou lei de Deus. Isso quer dizer que o ser humano não regride — nem espiritualmente, nem socialmente — ao seu estado de natureza ou “primitivo”. Em outras palavras, o progresso evolutivo espiralar é uma força endógena e espontânea (KARDEC, 2006, questões 778–779) que conduz a humanidade planetária. E, embora alguns seres humanos reacionários tentem impedir esse progresso, causando-lhe embaraços e retenções, ele ainda assim se afirmará gradualmente (KARDEC, 2006, questão 781), porque essa é a lei divina, essa é a vontade da vida que pulsa no mundo. De fato, não haverá paz global “sem trazer de volta do exílio ideias como a do bem-público, da boa sociedade, da igualdade, da justiça e assim por diante — ideias que não fazem sentido senão cuidadas e cultivadas na companhia de outros” (BAUMAN, 2000, p. 16). O progresso, hoje, envolve tais questões democráticas.

A civilização que temos — seja no capitalismo ou nos diversos modelos do antigo socialismo real — representa ainda um “progresso incompleto” (KARDEC, 2006, questão 790), pois falta maturidade aos seres humanos. Nós ainda não estamos “preparados” nem “dispostos” (KARDEC, 2006, questão 792) a viver numa sociedade igualitária, caridosa, ambientalmente sustentável e de bem-comum. Por outro lado, muitos acusam, ansiosamente, a lentidão desse progresso “natural” (os espíritos chamam-no de “regular e lento” – ver questão 783), mas eles sinalizam que esse processo poderá sofrer intervenções da lei de Deus para que ocorra uma “aceleração” revolucionária. Em outras palavras, certos abalos físicos ou morais poderão fazer a humanidade avançar mais celeremente rumo ao progresso social, econômico, cultural, político e espiritual. Por vezes, é preciso que o mal “chegue ao excesso” (KARDEC, 2006, questão 784) para que a sociedade perceba, com clareza, a necessidade “do bem e das reformas”, que poderão ser pacíficas ou não (vide lei de destruição).

De acordo com a concepção kardequiana, nossa civilização chegará ao ápice, à plenitude, quando estiver desenvolvida moralmente, vivendo cotidianamente a partir de uma ética das virtudes. Neste momento histórico em que ainda estamos mergulhados, aqueles que se julgam “civilizados” são, na verdade, apenas pessoas “esclarecidas” cognitivamente, mas carentes do componente ético-moral, embotadas no campo das virtudes e distantes do senso de irmandade e de comunhão necessários para um progresso pleno e autêntico da sociedade e de suas instituições (KARDEC, 2006, questão 793).

É importante frisar que Kardec, bom descendente da modernidade racionalista e do Iluminismo, compreende que o chamado progresso ético-moral será consequência do progresso intelectual/cognitivo. A razão — e não a irracionalidade das paixões destrambelhadas! — é o abre-alas para o avanço no campo das virtudes. Essa posição de Kardec não o torna ingênuo, pois ele tem clareza de que nem sempre o progresso intelectual e tecnocientífico traz o progresso ético-moral (KARDEC, 2006, questão 785). O século XX foi testemunha disso, e o XXI está nos mostrando, mais uma vez.

Os dois fenômenos (ou os dois progressos, cognitivo e ético) estão relacionados, é claro!, mas não de forma automática e mecânica. Podemos ter grande avanço educacional, científico e tecnológico, ainda ausente de uma sólida base ético-moral, pois a inteligência é uma força amoral, podendo servir ao bem ou à destruição.

Somente o tempo traz equilíbrio entre razão e ética, cognição e afetos, desenvolvimento intelectual-tecnocientífico e desenvolvimento ético-moral (KARDEC, 2006, questão 785). A ampliação da prática das virtudes é processual, assim como é processual a destruição de todas as manifestações de orgulho e egoísmo — que tomam forma em instituições socioeconômicas e políticas injustas — que impedem o surgimento de uma nova sociedade baseada no amor-caridade, no bem-viver e nos interesses da comunidade.

Contrariando o senso comum do conservadorismo que deseja eternizar leis e normas sociais, aprendemos com o espiritismo que as leis humanas — e seus aparatos jurídico-políticos — são variáveis e progressivas (KARDEC, 2006, questão 795), mudando ao longo do tempo. Somente a lei natural e divina é imutável, estável e perene, pois as demais leis sofrem processos contínuos de aperfeiçoamento — e assim deve ser. Esse aperfeiçoamento jurídico-político acontece, na visão kardequiana, pela “força das coisas” ou pela “influência das pessoas de bem” (KARDEC, 2006, questão 797), isto é, por razões endógenas e por ativismo social.

Significa dizer que a humanidade vai progredindo juridicamente e politicamente, aos trancos e barrancos, mas vai. O espiritismo é, nesse sentido, otimista e fonte de esperança. Exemplos não nos faltam: o direito trabalhista e previdenciário, a ampliação do sufrágio, a redução das penas de morte, a afirmação dos direitos humanos, o reconhecimento dos direitos LGBTQIA+, a ampliação da proteção a refugiados, o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas em Estados plurinacionais, as leis antirracistas etc.

Todos esses avanços civilizatórios dependem também de fortes investimentos públicos em educação. É na formação dos seres humanos que reside a fonte fundamental do processo de reformas (libertação e emancipação) que nos impulsiona ao verdadeiro progresso societário e espiritual (KARDEC, 2006, questão 796).

Para o espiritismo, a razão joga papel central, pois, sem progresso intelectual — educacional, científico, tecnológico e cultural —, o ser humano não saberia fazer escolhas, discernir o bem do mal e, portanto, não poderia ser responsabilizado por seus atos devido à sua ignorância. Assim, o espiritismo deve ser um aliado visceral das lutas pela educação, a exemplo de Darcy Ribeiro e Paulo Freire em nosso país.

Por que a educação é fundamental para o progresso?

A educação é fundamental porque o progresso da humanidade tem por base o progresso de seus indivíduos (KARDEC, 2006, questão 789). Observe bem: não se trata de dizer que o progresso, lei natural da vida, dependa exclusivamente dos indivíduos — pois, para Allan Kardec, o progresso segue seu curso estrutural, ainda que muitos indivíduos fiquem para trás. Por outro lado, ele ganhará maior força e velocidade quando, ao longo de várias encarnações, os indivíduos se tornarem pessoas melhores, mais caridosas e compassivas, mais preocupadas com o bem-comum e o bem-viver.

Essa visão kardequiana é coerente com a tese do sociólogo Norbert Elias sobre a sociedade dos indivíduos: para ele, não há uma oposição entre indivíduo e sociedade, mas uma interdependência contínua e dinâmica. Os processos de civilização ocorrem justamente na medida em que os indivíduos se transformam em suas maneiras de sentir, pensar e agir — e essa transformação repercute diretamente nas estruturas sociais. Por isso, quanto mais avançados são os indivíduos (do ponto de vista das virtudes), mais justa e fraterna será a sociedade que formam.

Quando esses indivíduos se tornarem maioria na sociedade, ela sofrerá profundas mudanças socioeconômicas, políticas e culturais, acelerando seu ritmo de progresso. Kardequianamente falando, a mudança social está profundamente conectada à transformação individual — pois, como dizem hindus e budistas, o mundo é uma teia.

E qual é a missão do espiritismo nesse contexto?

O espiritismo tem por missão contribuir com o progresso da civilização humana e do bem-viver, contrapondo-se à barbárie e à degradação ambiental, ética e psíquica. Nesse sentido, “nada é mais importante do que recuperar a paixão das ideias” (BADIOU, 2012, p. 59), tal como a da lei de progresso em Kardec.

É destruindo o materialismo grosseiro — e suas consequências (egoísmo, consumismo, avareza, culto ao dinheiro, negação da vida espiritual e do ócio criativo) — e ampliando os laços de irmandade e solidariedade (KARDEC, 2006, questão 799) que o espiritismo poderá ser mais uma alavanca progressista no mundo, ajudando a anular os “sintomas de uma corrosiva desesperança existencial” (BAUMAN, 2000, p. 25) que tende a implodir os laços sociais.

Não cabe aqui ansiedade, precipitação ou tentativa voluntarista de acelerar o tempo histórico. Sabemos que “o mundo contemporâneo é um recipiente cheio até a borda de medo e frustração” (BAUMAN, 2000, p. 62) e que nossa sociedade líquida está permeada por solidão, impotência, conformismo e incerteza (BAUMAN, 2000, pp. 11–13). Por outro lado, se quisermos resgatar a força do pensamento kardequiano, cabe a nós — espíritas — trabalhar, com esperança, resiliência e boa-vontade, pela hegemonia das forças progressistas, conscientes de que essa transformação “só poderá operar-se com o tempo, gradualmente” (KARDEC, 2006, questão 800). A natureza não dá saltos e “cada coisa tem o seu tempo” (KARDEC, 2006, questão 801) para frutificar.

Enquanto isso, a luta segue, pois as forças irracionais, conservadoras e reacionárias da globalização hegemônica — defensoras da primazia do mercado, da liberalização do comércio, da privatização, da desregulamentação financeira, da precarização do trabalho e da destruição das redes de proteção social e ambiental — buscam colocar entraves ao processo de emancipação humana. Sabemos que “o inimigo mais temível da política de emancipação” é a “interioridade do niilismo e a crueldade sem limites que pode acompanhar seu vazio” (BADIOU, 2012, p. 22).

Por isso, precisamos esperançar, como disse Paulo Freire, e nos unir ao processo de globalização contra-hegemônica, constituído “a partir de baixo” (SANTOS, 2013, p. 30), articulando questões pessoais, locais e globais contra a opressão, o colonialismo, a desigualdade (social, racial e sexual), a destruição dos empobrecidos, a catástrofe ecológica, a expulsão de camponeses e indígenas de seus territórios ancestrais, o endividamento de famílias e pequenos empresários, e a criminalização do protesto social.

O espiritismo poderá contribuir muito, nesse sentido progressista, se retomar suas bases kardequianas e fazer uma hermenêutica para o século XXI, afastando-se de alianças com teologias políticas conservadoras. É na articulação entre a salvífica caridade, o cuidado dos outros e a “luta política contra as causas do sofrimento” (SANTOS, 2013, p. 121) que o espiritismo poderá ser um espaço relevante para o progresso humano.

Bibliografia
BADIOU, A. (2012). A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo.
BAUMAN, Z. (2000). Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar.
KARDEC, A. (2006). O livro dos espíritos (Tradução de Evandro Noleto Bezerra). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
SANTOS, B. de S. (2013). Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez.