Do Progresso
“É precipitado e quase absurdo acreditar que o progresso deva
necessariamente ocorrer.” (Nietzsche)
Contextualizando e identificando pressupostos
Kardec estava inserido na mentalidade da “modernidade
triunfante” do século XIX que via a rápida industrialização, urbanização e modernização tecnológica, apenas como evidências inequívocas de progresso da humanidade. Nesse contexto, nosso fundador pensava
o progresso imerso na mentalidade positivista presente no espirit du temps do
século XIX.
A certeza do progresso inexorável, automático, é característica do positivismo e da maioria dos pensadores iluministas, que transformaram a ideia de progresso em um dogma.
No anticlerical Iluminismo francês, a concepção de Providência assumiu um sentido mais deísta. Para os iluministas, não se necessita mais da intervenção direta e constante de um Deus transcendente, pois a ideia de progresso como uma lei natural imanente, que através da razão, conduziria a humanidade rumo à perfeição, seria uma “versão secularizada” da crença cristã na divina providência.
Antônio Carlos Lobão [1] identifica que foi a partir
da implantação do capitalismo no século XVIII,
que a fé no Progresso
se transformou num paradigma
para a Humanidade (conforme o sentido atribuído por Thomas Kuhn à categoria de Paradigma), constituindo-se no grande
pilar sobre o qual estão sustentados
os principais valores da nossa civilização contemporânea. Portanto,
não seria apenas para o espiritismo que o paradigma do progresso assumiu uma posição de grande relevância e centralidade.
Em Kardec, os agentes causais
que ativam o progresso seriam:
i)
a natureza humana
onde
o
progresso é
uma
lei
inevitável,
ii)
a providência divina,
que além de criar a lei do progresso estaria
intervindo constantemente para que ela seja cumprida,
iii)
a influência dos indivíduos extraordinários, cujas
qualidades teriam sido desenvolvidas individualmente ao longo de suas encarnações, fora do contexto
social em que viviam e exerceram sua influência.
Como as leis naturais foram criadas por Deus e os indivíduos extraordinários seriam “instrumentos de Deus”, o grande agente causal do progresso é, para Kardec, a providência divina.
O providencialismo impondo
a lei do progresso está bem explícito em O Livro dos Espíritos (LE):
..se o homem progride, é que
Deus assim o quer; (item 778)
…quando um povo não avança bastante rápido, Deus lhe provoca,
de tempos em tempos, um abalo que o transforma. (item 783)
…porque deve chegar
ao fim determinado pela Providência” (item 783) e ainda,
“os homens que tentam deter a marcha do progresso, seriam pobres seres que Deus castigará… (item 781-a)
Em Kardec, a ideia de progresso, oriunda do iluminismo e do positivismo, conecta-se em perfeita harmonia com o providencialismo cristão. O casamento entre a razão iluminista e o providencialismo, seria possível, pois por mais que os desígnios da providência possam parecer misteriosos, nada permite supor que eles sejam contrários à razão. Na disputa entre a liberdade e a vontade divina, o que se ressalta é antes a limitação da condição humana.
Problematizando
{1} Kardec faz a separação entre o progresso moral e o progresso intelectual, reproduzindo a lógica do
pensamento iluminista, para quem, na
medida em que a razão se expandisse e o conhecimento crescesse, a vida necessariamente melhoraria, sendo o
desenvolvimento moral uma consequência do desenvolvimento da razão. Assim, mais do que antecipar-se ao progresso moral, o
progresso intelectual seria um pré-requisito
dele, “o fruto não pode vir antes da flor” (LE, item 791).
No século XX, a antropologia demonstrou que povos ditos “primitivos” podem vivenciar com maior
intensidade, valores éticos como igualdade e fraternidade, do que povos ditos desenvolvidos ou “civilizados”. Sendo assim, o progresso intelectual e tecnológico, ao contrário
do que Kardec acreditava, não seria necessariamente um pré-requisito, ou uma fase anterior e necessária para o progresso
moral. Para o sociólogo Edgar Morin [2], o progresso carrega dentro de
si um buraco negro, que é a ausência de qualquer progresso moral que acompanhe o progresso
científico-técnico-econômico. Foi esse progresso que tornou possíveis Auschwitz, Hiroshima e Gaza.
Precisamos fugir da tentação de confundir o progresso das técnicas e do
conhecimento com o progresso da Humanidade em si. O progresso tecnológico, quando se autonomiza com relação aos “fins que deveria servir”,
transforma-se em progresso
do poder, da opressão e da dominação, sendo necessário observar
a que interesses ele está servindo.
{2} Para o sociólogo
Piotr Sztompka [3], uma questão
central é:
Progresso para quem e sob que aspecto?
Não existe progresso absoluto. A especificação dos
valores tomados como medidas ou
critérios de progresso é sempre necessária. O mesmo processo pode ser visto como progressivo, ou não, dependendo dos valores
preferenciais assumidos, pode representar progresso para uns e regresso
para outros.
O progresso não é um conceito puramente objetivo,
descritivo, é também uma categoria de
valor que pode variar entre pessoas, classes
sociais, grupos e nações. Quando trabalhamos sujeitos
históricos concretos em contextos específicos a ideia do progresso universal
e absoluto da humanidade pode se apresentar como uma construção ideológica a serviço do status quo.
{3} Para Kardec, a solução dos problemas produzidos pelo progresso estaria
no próprio progresso, numa analogia com a biologia, como as sementes ou larvas que contém nelas mesmas tudo o que
lhes acontecerá, como se o futuro já
estivesse contido no seu início. O futuro aparece
aqui como um espaço de projeção capaz de absorver e solucionar tudo o que não tinha lugar ou que
era indesejado no presente.
Além disso, faz parecer
que os males sociais e todas as mazelas produzidas pelo progresso econômico e
tecnológico, seriam expressões do próprio progresso
humano em andamento. Na medida em que o progresso continuar
avançando, a Humanidade atingirá o progresso
moral, que solucionará (sempre no futuro), “os males que o progresso provocou”.
{4} Allan Kardec indagou (LE, item 797) como o homem poderia ser levado a reformar as suas leis. Registrou a seguinte resposta (negrito nosso):
Isso acontecerá naturalmente, pela força das circunstâncias e pela influência das pessoas de bem que o conduzem na senda do progresso. Há muitas que já foram reformadas e muitas outras ainda o serão. Espera!
Mas como assim, espera?
Se o progresso desenrola-se naturalmente, não existe a necessidade de lutar por um futuro melhor, pois esse viria automaticamente. Essa concepção de progresso estimula uma atitude passiva, contemplativa e adaptativa, do tipo “esperar para ver”. Caberia ao Homem, não reconhecido como o principal agente histórico, a resignação e a espera, aguardando a ordem natural do progresso se realizar “pela força das coisas”.
A passividade contemplativa ante os desígnios
divinos e a fé na futura
instalação do reino de Deus é preservada, porém convertida na certeza
do progresso inevitável que acontecerá pela força natural
das circunstâncias, independente da ação do ser humano.
Precisamos abandonar a ilusão de que o progresso acontece
naturalmente pela força das coisas e admitir a sua contingência, que ele pode ou não ocorrer, dependendo das ações que as pessoas
realizam. Toda a ideia de um futuro
já definido funciona como gerador psicológico
de acomodação e passividade sobre os elementos sociais ativos e criadores do presente, destituindo-os de sua própria
vitalidade, quando estes deveriam
estar agindo, criando e contribuindo pela construção coletiva de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.
A concepção de progresso inevitável que conduz a humanidade rumo a um fim determinado, representa para o filósofo Walter Benjamin
[4] um conformismo, um conservadorismo que tenta impedir que outras histórias, que não aquela que se desenrola
no presente, possam se fazer. Como se
houvesse um único presente necessário para se chegar ao futuro, e este precisaria ser exatamente como se
apresenta. Benjamin considera um equívoco
alienante considerarmos que vivemos o único presente
possível que surge mecanicamente de um passado, que por sua vez é redesenhado ele mesmo como o único passado possível,
e sob um quadro fatalista no qual as três instâncias da temporalidade (o passado, o presente e o
futuro) estariam enredadas
por um progresso inevitável, naturalizado,
no qual podemos sempre confiar cegamente, no sentido de que trará um mundo sempre melhor (na verdade não apenas um mundo melhor, mas de fato “o único mundo
possível”). Assim, o progresso para Benjamin, pode assumir características de ilusão, uma política de conservação do status quo.
Lobão também identifica o caráter conservador que a noção de progresso inevitável assume. Tanto o
paradigma do progresso precisa das transformações
decorrentes do Capitalismo, com seu caráter progressivo de constante inovação
para se tornar hegemônico, quanto o sistema
capitalista precisa da ideologia subjacente ao paradigma do progresso, para a legitimação da sua dominação
e subordinação à lógica da acumulação, colocando
o capitalismo como única alternativa para alcançar um futuro
luminoso. Para Lobão [1]:
A ideia de progresso
transformada em paradigma, sustenta a certeza
de um futuro radiante para todos, certeza
que legitima a dominação
burguesa e permite, de certa forma, manter num patamar funcional as contradições do sistema e amortecer a luta de
classes. Em outras palavras, ao se
colocar como portadora de um projeto social que tende a resultar
no bem-estar de toda a população, a burguesia encontra
a partir da ideia de progresso, um forte argumento
a favor da acumulação.
O progresso não pode garantir que o futuro será sempre
melhor que o passado (garantia é incompatível com história). Ele não é inerente à história, nem acontece como resultado
automático de mecanismos sociais imanentes. O progresso é sempre uma possibilidade aberta de aperfeiçoamento, resultado de um
processo de
aprendizagem. Uma possibilidade histórica resultado das ações humanas
plurais e coletivas e não o produto inevitável da
vontade divina ou de indivíduos excepcionais. Depende
da vontade e da ação dos homens,
que sendo livres, fazem suas escolhas. Como diz
Walter Benjamin: “…o presente é sobretudo o tempo da ação, sobre
a qual o futuro poderá
ser moldado.”
{5} Paul Tillich [5] afirma que nem tudo estaria sujeito
ao progresso, ou podemos
afirmar que existe progresso nas artes? Que uma estátua do século XIX é superior a uma dos gregos antigos? Ou
que um escritor, apenas por ser contemporâneo, é superior a Shakespeare? Admite-se
a possibilidade de um progresso
técnico, ou seja, na utilização e produção dos
materiais, mas não a valoração de uma obra ou estilo em relação aos que os antecederam pelo fato de ser posterior. Talvez possamos falar
em bons e maus artistas dentro de cada estilo, mas não há um estilo superior
a outro por não haver um fundamento ou valor universal que possa estabelecer quem mais
se aproxima dele, quem seja melhor ou pior.
Seguindo este raciocínio, Tillich também acredita que não existe progresso na Religião. Apesar de reconhecermos uma relação progressiva do Antigo para o Novo Testamento, isso não se aplica à essência da religião, que é a manifestação da “preocupação última”, a dimensão do encontro do espírito do homem com o Divino.
Para os espíritas, continuar acreditando na
pretensiosa crença de que o espiritismo é um “cristianismo evoluído”, que representa o progresso das religiões e que em breve irá converter e unir toda a Humanidade seria uma atitude
supremacista tão equivocada quanto qualquer tentativa
de hierarquizar as religiões em superiores e inferiores.
Seguindo essa linha de raciocínio, Elias Moraes reflete que [6]:
As ideias de “terceira revelação divina” e do “consolador prometido” necessitam ser repensadas dentro do movimento espírita porque, em vez de facilitar o diálogo com a sociedade, esse tipo de argumento apenas equipara o Espiritismo a algumas propostas religiosas do mundo no que elas têm de pior, que é a pretensão de colocar-se como melhor do que outras.
Um Paradigma positivo, ainda que em crise
No mundo atual o futuro deixou de ser visto
necessariamente como o lugar da redenção,
como era no horizonte de expectativas da humanidade nos séculos XVIII
e XIX. O progresso como o motor da história, como um fio condutor que
confere racionalidade e sentido à aventura humana na
Terra, perdeu a naturalidade que possuía.
Vivemos um momento
histórico em que, se o ser humano não atentar
para as ameaças de nosso tempo e a acelerada
destruição do planeta produzida por ele próprio e
sustentada por sistemas também por ele desenvolvidos; a catástrofe não só é possível, mas bem provável.
Para que o conceito de progresso possa ser renovado
sem ser removido do nosso horizonte ou mesmo negado como possibilidade,
o espírita contemporâneo tem que
abandonar a armadilha alienante que é trabalharmos apenas com as referências e perspectivas que Kardec dispunha
em sua época, retirando da ideia de progresso as suas premissas enganosas.
Cabe ao espírita resgatar e valorizar a essência da ideia de progresso em Kardec, cuja principal medida é a excelência ética que implica na construção de uma vivência fraterna, plena de esperança de um mundo e um ser humano melhor.
A ideia de progresso continua
tendo um papel determinante na construção
da esperança como sentimento no mundo contemporâneo, porque ela alivia a tensão existencial entre o que as pessoas
são e o que gostariam de ser, entre o
mundo que temos e o mundo que queremos, retirando das adversidades e do sofrimento a última palavra.
Esperança não se confunde com ilusão ou alienação, não
acredita no “futuro como salvação”,
mas como enigma e possibilidade. A esperança se fundamenta na realidade
que habita, detectando no presente problemático os traços que lhe permitem
ver um mundo melhor como possível.
A esperança é o modo de atuação
daquele que quer superar o sofrimento
presente mediante a exploração de possibilidades fecundas que esse mesmo presente lhe sugere. O
homem com esperança fala do progresso, mas não como algo infalível,
mas sempre como uma
possibilidade, um horizonte coletivo que se constrói e se cultiva
no presente.
Referências:
[1]
Progresso e Capitalismo.
Dissertação de Mestrado de Antônio Carlos de Azevedo Lobão.
Progresso e capitalismo
Orientador: Renato Peixoto
Dagnino Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de…
[2] A sociologia da mudança
social.
Autor: Piotr Sztompka. Editora:
Civilização Brasileira.
[3]
O progresso carrega
dentro de si um buraco
negro.
"O progresso
carrega dentro de si um buraco negro". Artigo de Edgar Morin
O Instituto Humanitas Unisinos - IHU - um órgão transdisciplinar da Unisinos, que visa apontar novas questões e buscar…
Artigo de Leide Alvarenga Turini.
A crítica da história linear e
da ideia de progresso
Leide Alvarenga Turini Universidade Federal de Uberlândia (UFU) https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v18n35/36a2004-587…
seer.ufu.br
[5]
Tillich e a crítica à ideia de progresso.
Artigo de Cleber A. S. Baleeiro. Revista Eletrônica Correlatio (nº 19, junho de 2011).
[6]
Contextualizando Kardec: do século XIX ao XXI. autor: Elias Moraes. Editora:
AEPHUS.
[7] Fundamentos para uma Teoria
Social Espírita.
Autor: Luiz Signates. Editora: AEPHUS.
[8]
A Lei do Progresso (Parte 1).
O Cast dos Espíritos (Episódio 46).
https://youtu.be/uW0aemh2Adk
[9]
Estamos evoluindo? Religião e ideia de progresso. Exposição de Ângela Moraes. https://youtu.be/vjHDl2PQUWw
[10] A crítica à retrodição e à noção mecanicista de progresso: Nietzsche, Benjamin e Guha.
Artigo de José Costa D’Assunção Barros.
História Revista
A História Revista é uma publicação quadrimestral da Universidade
Federal de Goiás, dedicada à divulgação de pesquisas… revistas.ufg.br
[10] As falácias da ideia de progresso segundo Nietzsche.
Artigo de Renato Nunes Bittencourt. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences. Maringá, v. 33, n. 1, p. 81–96, 2011.
As falácias
da ideia de progresso segundo
Nietzsche= The fallacies of the idea of progress…
Abstract: Apresentamos as críticas de Nietzsche ao ideário moderno
de "progresso", entendido como aprimoramento da…
[11]
Notas sobre o progresso em Adorno (ainda).
Artigo de Eduardo Rocha. Revista ethic@,
Florianópolis, v. 20, n. 2, 584–611. Ago. 2021.
[12]
Repensando a decadência e a validade
da ideia de progresso hoje, a partir do pensamento de Paul Tillich:
incitações e problematizações introdutórias.
Artigo de Elton Vinicius
Sadao Tada. Revista Correlatio (Online)
, v. 8, p. 119– 128, 2009.
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