09 agosto 2024

Sobre Anjos e Demônios - Salomão Jacob Benchaya

 Uma questão que sempre me incomodou nos escritos de Allan Kardec foi o seu tratamento exageradamente conciliador entre a abordagem espírita e a figura teológica dos anjos e demônios de diversas religiões, notadamente a católica. Kardec tratou desses assuntos em O Livro dos Espíritos e n’O Céu e Inferno. Na pergunta 128 (LE), Kardec pergunta se “os seres a que chamamos de anjos, arcanjos, serafins, formam uma categoria especial, de natureza diferente da dos outros Espíritos” e a resposta é “Não; são os espíritos puros: os que se acham no mais alto grau da escala e reúnem todas as perfeições.” A resposta, a meu ver, deveria ficar restrita ao “Não!”. Seu complemento a torna confusa.

          Em o Céu e o Inferno (Cap. VIII), embora Kardec estivesse criticando os ensinamentos da Igreja, refere-se a “anjos segundo a Igreja” e a “anjos segundo o espiritismo”. Esta última expressão sugere a existência dessa categoria de seres na Doutrina Espírita, o que não pode ser aceito. Não há analogia possível entre “anjo” e “espírito puro ou superior”. Anjos, segundo a Igreja, são seres criados puros, ou seja, privilegiados, escolhidos. Espíritos Puros, na visão espírita, são seres que, através das múltiplas encarnações, evoluíram, entre erros e acertos, até chegarem à perfeição.

        Diversas tradições religiosas admitem a existência de seres angélicos intermediários entre Deus e o homens com funções geralmente benignas, sendo, inclusive, classificados hierarquicamente. Diz Kardec, no Cap. X de O Céu e o Inferno, item 6: há “três categorias de anjos segundo a Igreja, a primeira ocupa-se exclusivamente do Céu; a segunda, do governo do universo, e a terceira, da Terra. É nesta última que se encontram os anjos de guarda encarregados da proteção de cada indivíduo. Somente uma parte dos anjos, desta última categoria, é que compartilhou da revolta e foi transformada em demônios.”

          A mesma incoerência acontece com a analogia que Kardec faz entre a figura de demônios, da teologia católica, com a de espíritos inferiores ou obsessores, do espiritismo.

        Para o espiritismo, há espíritos atrasados ou inferiores, mas em processo inelutável de evolução, jamais destinados ao eterno mal. Na Igreja, os demônios resultaram da rebeldia de um grupo de anjos que, após renhida batalha com as hostes do bem, foram expulsos e punidos por Deus a permanecerem eternamente maus, com grandes poderes, sob as ordens de Satanás, em oposição permanente ao Criador.

        O problema é que, apesar da diferente explicação espírita, tais conceitos católicos são repetidos, como no Cap. X de O Céu e o Inferno, cujo título é “Intervenção dos Demônios nas modernas manifestações”. Kardec quase que faz um estudo demonológico à luz dos ensinos católicos. Uma análise dispensável. Outro exemplo, é a utilização da figura do “anjo da guarda”, também copiada da Igreja.

         É compreensível que Kardec tenha feito tais abordagens com a intenção de desfazer as lendas difundidas pela Igreja, particularmente sobre a ação demoníaca para exercer seu controle e poder sobre as massas.

         Mas hoje, a liberdade de pensar e a necessidade de manter o espiritismo atualizado devem nos desobrigar do uso dessas expressões.

        Na Doutrina Espírita não há lugar para a existência de anjos ou demônios. Esses são conceitos católicos. Simples assim. (Artigo publicado no jornal CCEPA Opinião, edição de agosto/2020)

 

Salomão Jacob Benchaya

Membro do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, da CEPABrasil e da CEPA. Ex-dirigente da União Espírita Paraense, do Grupo Espírita Vinha de Luz, em Belém do Pará, ex-presidente da FERGS (Federação Espírita do Rio Grande do Sul).

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