Uma questão que sempre me incomodou nos escritos de Allan Kardec foi o seu tratamento exageradamente conciliador entre a abordagem espírita e a figura teológica dos anjos e demônios de diversas religiões, notadamente a católica. Kardec tratou desses assuntos em O Livro dos Espíritos e n’O Céu e Inferno. Na pergunta 128 (LE), Kardec pergunta se “os seres a que chamamos de anjos, arcanjos, serafins, formam uma categoria especial, de natureza diferente da dos outros Espíritos” e a resposta é “Não; são os espíritos puros: os que se acham no mais alto grau da escala e reúnem todas as perfeições.” A resposta, a meu ver, deveria ficar restrita ao “Não!”. Seu complemento a torna confusa.
Em o Céu e o Inferno (Cap. VIII), embora Kardec estivesse criticando os ensinamentos da Igreja, refere-se a “anjos segundo a Igreja” e a “anjos segundo o espiritismo”. Esta última expressão sugere a existência dessa categoria de seres na Doutrina Espírita, o que não pode ser aceito. Não há analogia possível entre “anjo” e “espírito puro ou superior”. Anjos, segundo a Igreja, são seres criados puros, ou seja, privilegiados, escolhidos. Espíritos Puros, na visão espírita, são seres que, através das múltiplas encarnações, evoluíram, entre erros e acertos, até chegarem à perfeição.
Diversas tradições religiosas admitem a
existência de seres angélicos intermediários entre Deus e o homens com funções
geralmente benignas, sendo, inclusive, classificados hierarquicamente. Diz
Kardec, no Cap. X de O Céu e o Inferno, item 6: há “três categorias de anjos
segundo a Igreja, a primeira ocupa-se exclusivamente do Céu; a segunda, do
governo do universo, e a terceira, da Terra. É nesta última que se encontram os
anjos de guarda encarregados da proteção de cada indivíduo. Somente uma parte
dos anjos, desta última categoria, é que compartilhou da revolta e foi
transformada em demônios.”
A mesma incoerência acontece com a analogia que Kardec faz entre a
figura de demônios, da teologia católica, com a de espíritos inferiores ou
obsessores, do espiritismo.
Para
o espiritismo, há espíritos atrasados ou inferiores, mas em processo inelutável
de evolução, jamais destinados ao eterno mal. Na Igreja, os demônios resultaram
da rebeldia de um grupo de anjos que, após renhida batalha com as hostes do
bem, foram expulsos e punidos por Deus a permanecerem eternamente maus, com
grandes poderes, sob as ordens de Satanás, em oposição permanente ao Criador.
O
problema é que, apesar da diferente explicação espírita, tais conceitos
católicos são repetidos, como no Cap. X de O Céu e o Inferno, cujo título é
“Intervenção dos Demônios nas modernas manifestações”. Kardec quase que faz um
estudo demonológico à luz dos ensinos católicos. Uma análise dispensável. Outro
exemplo, é a utilização da figura do “anjo da guarda”, também copiada da
Igreja.
É
compreensível que Kardec tenha feito tais abordagens com a intenção de desfazer
as lendas difundidas pela Igreja, particularmente sobre a ação demoníaca para
exercer seu controle e poder sobre as massas.
Mas
hoje, a liberdade de pensar e a necessidade de manter o espiritismo atualizado
devem nos desobrigar do uso dessas expressões.
Na
Doutrina Espírita não há lugar para a existência de anjos ou demônios. Esses
são conceitos católicos. Simples assim. (Artigo publicado no jornal CCEPA
Opinião, edição de agosto/2020)
Salomão Jacob Benchaya
Membro do Centro Cultural Espírita
de Porto Alegre, da CEPABrasil e da CEPA. Ex-dirigente da União Espírita
Paraense, do Grupo Espírita Vinha de Luz, em Belém do Pará, ex-presidente da
FERGS (Federação Espírita do Rio Grande do Sul).
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