05 agosto 2025

Kardec, Racismo e Iconoclastia - Néventon Vargas

 

            Kardec, Racismo e Iconoclastia

Por Néventon Vargas: Engenheiro Civil, Licenciado em Física, militar inativo, membro da ASSEPE - Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa -PB e Assessor de Comunicação da CEPA Brasil.

  “Tudo que é dito revela-se mais claro que o não dito.”  (Sócrates)

 

A morte de George Floyd[1] nos EUA, em 25 de maio de 2020, desencadeou uma série de protestos pelo mundo, tendo, inclusive, como alvo inúmeros heróis históricos, cujas estátuas estão espalhadas pelos mais variados espaços em diversos países. Um dos alvos, Winston Churchill (1874-1965), por muitos considerado o principal herói da 2ª Guerra Mundial, cito aqui pela emblemática manifestação do atual premier britânico Boris Johnson:

“Sim, às vezes ele expressava opiniões que eram e são inaceitáveis para nós hoje, mas ele era um herói e merece esse memorial. Nós não podemos tentar editar ou censurar nosso passado. Não podemos fingir que temos uma história diferente” 

Com tal exemplo, nos perguntamos: como fica Allan Kardec no atual contexto? Será também seu túmulo no Père-Lachaise[2] alvo dos protestos? Salienta-se o fundador do Espiritismo como notório racista? Somos iconoclastas ou abominamos desnudar a personalidade dos nossos ídolos?

Não há dúvida que geralmente os adeptos da Doutrina Espírita, especialmente os mais idólatras, não se sentem confortáveis com as declarações manifestamente racistas de Kardec em algumas de suas publicações.

Matheus Laureano, no seu artigo “Kardec, raça e ciência”[3] salienta que apesar de Kardec ter sempre se “...pautado pela fraternidade e entendimento de que a educação é o meio de transformação da sociedade; sempre buscou o respeito, a igualdade, a liberdade e tudo o que pode engrandecer a vida humana. Um humanista nato.”, era, ainda, “...um homem inserido em determinado contexto e dele foi prisioneiro também.”. Assim sendo, tinha a postura eurocentrista e colonialista, comum do seu tempo e espaço, tratando o negro como inferior, desumanizando-o, assemelhando-o “... a animais que precisam ser domados para viverem em sociedade.”.

Em uma perspectiva parece demasiado rigorosa a condenação de seres humanos que viveram no passado, tendo como parâmetros os valores e a consciência amealhados gradativamente com o passar do tempo até o presente. Por outro lado, também não é eticamente aceitável ignorar a realidade e deixar de enfrentar a questão inegável de que Kardec defendeu a superioridade do europeu branco em relação ao negro africano, conforme as referências transcritas no artigo acima citado. Não há como negar! Kardec teve ideias racistas!

Em defesa do insigne mestre Rivail, alguns espíritas dizem que o texto “Teoria da Beleza” inserido em “Obras Póstumas” não foi escolha dele a sua publicação. Esse argumento, entretanto, me parece pueril e sem muito sentido, pois, salvo o caso de alguma possível adulteração, a simples existência de ideias colocadas no papel demonstra como pensava Kardec na intimidade, independentemente de terem ou não sido publicadas.

O fato é que, conforme expressou Boris Johnson, o passado não pode ser editado e não podemos fingir que temos uma história diferente. Podemos, entretanto, reconhecer as sujeições de Kardec aos limites paradigmáticos do seu tempo, sendo ele um ser humano falível como todos nós. Não há razão para “santificá-lo” ou “idolatrá-lo”, ainda que em muitos aspectos ele tenha conseguido superar modelos vigentes em sua época. Vencido esse obstáculo podemos e devemos atribuir-lhe todos os créditos pelo trabalho incansável, realizado nos últimos 12 anos de sua vida em prol de uma filosofia libertadora, progressista e profundamente humanista.

Não há mais nos nossos dias espaços para tergiversações!

O Espiritismo fundado por Allan Kardec foi um movimento vanguardista em meados do século XIX, mas que lentamente se avolumou e se estruturou muito mais em torno de instituições religiosas e, consequentemente, conservadoras, que tendem a rejeitar toda e qualquer manifestação crítica às ideias do “codificador” e dos espíritos que o assessoraram.

Com o recrudescimento do extremismo conservador no mundo todo, impõe-se aos movimentos espíritas progressistas que gravitam, como alternativa, em torno do religiosismo, firmes posicionamentos sobre a cristalização do racismo individualista, institucional e estrutural, conforme vêm concluindo as ciências sociais, embora Silvio Almeida[4] diga que “o racismo é sempre estrutural” e explica, “é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”.

Concluindo, ainda que Kardec tenha nos legado alguns escritos racistas; ainda que estátuas de ídolos históricos tenham sido depredadas pelo mundo a fora e outras escondidas para protegê-las, precisamos escancarar o que sabemos e está explícito na personalidade do nosso mestre, a fim de purgar o próprio Espiritismo de suas mazelas, buscando estruturá-lo de forma sempre dinâmica e progressista para enfrentar os desafios que se avizinham, diante da célere evolução intelectual, tecnológica e social.

Despir nossos ídolos, dirá muito mais de nós do que deles mesmos!

 

[Artigo publicado no Jornal Opinião 288, de setembro de 2020]

 



[1] Conhecido como Big Floyd — nome que representa seu grande porte físico —, George Perry Floyd Jr. foi um homem afro-americano, 46 anos, que foi assassinado em Minneapolis, Minnesota, no dia 25 de maio de 2020, estrangulado por um policial branco que se ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem por supostamente usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado. (https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/quem-era-george-floyd.phtml).

 

[2] Cemitério Père-Lachaise, uma das atrações turísticas mais visitadas de Paris, com mais de dois milhões de visitantes por ano, é o local em que está a sepultura de Allan Kardec. (http://diretodeparis.com/pere-lachaise-o-cemiterio-mais-famoso-do-mundo/)

 

[4] Almeida, Silvio Luiz de – Racismo Estrutural (Feminismos Plurais). Introdução. São Paulo. Polen, 2019.

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