Kardec, Racismo e Iconoclastia
Por Néventon Vargas: Engenheiro
Civil, Licenciado em Física, militar inativo, membro da ASSEPE -
Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa -PB e Assessor de
Comunicação da CEPA Brasil.
A morte de George Floyd[1] nos EUA, em 25 de maio de 2020, desencadeou uma série de protestos pelo mundo, tendo, inclusive, como alvo inúmeros heróis históricos, cujas estátuas estão espalhadas pelos mais variados espaços em diversos países. Um dos alvos, Winston Churchill (1874-1965), por muitos considerado o principal herói da 2ª Guerra Mundial, cito aqui pela emblemática manifestação do atual premier britânico Boris Johnson:
“Sim, às vezes ele expressava opiniões que eram e
são inaceitáveis para nós hoje, mas ele era um herói e merece esse memorial.
Nós não podemos tentar editar ou censurar nosso passado. Não podemos fingir que
temos uma história diferente”
Com tal
exemplo, nos perguntamos: como fica Allan Kardec no atual contexto? Será também
seu túmulo no Père-Lachaise[2] alvo dos protestos?
Salienta-se o fundador do Espiritismo como notório racista? Somos iconoclastas
ou abominamos desnudar a personalidade dos nossos ídolos?
Não há
dúvida que geralmente os adeptos da Doutrina Espírita, especialmente os mais
idólatras, não se sentem confortáveis com as declarações manifestamente racistas
de Kardec em algumas de suas publicações.
Matheus
Laureano, no seu artigo “Kardec, raça e ciência”[3]
salienta que apesar de Kardec ter
sempre se “...pautado pela
fraternidade e entendimento de que a educação é o meio de transformação da
sociedade; sempre buscou o respeito, a igualdade, a liberdade e tudo o que pode
engrandecer a vida humana. Um humanista nato.”, era, ainda, “...um homem inserido em determinado
contexto e dele foi prisioneiro também.”. Assim sendo, tinha a postura
eurocentrista e colonialista, comum do seu tempo e espaço, tratando o negro
como inferior, desumanizando-o, assemelhando-o “... a animais que precisam ser domados para viverem em sociedade.”.
Em uma perspectiva parece demasiado
rigorosa a condenação de seres humanos que viveram no passado, tendo como
parâmetros os valores e a consciência amealhados gradativamente com o passar do
tempo até o presente. Por outro lado, também não é eticamente aceitável
ignorar a realidade e deixar de enfrentar a questão inegável de que Kardec
defendeu a superioridade do europeu branco em relação ao negro africano,
conforme as referências transcritas no artigo acima citado. Não há como negar! Kardec teve ideias racistas!
Em defesa do insigne mestre Rivail, alguns espíritas dizem
que o texto “Teoria da Beleza” inserido em “Obras Póstumas” não foi escolha
dele a sua publicação. Esse argumento, entretanto, me parece pueril e sem muito
sentido, pois, salvo o caso de alguma possível adulteração, a simples
existência de ideias colocadas no papel demonstra como pensava Kardec na
intimidade, independentemente de terem ou não sido publicadas.
O fato é
que, conforme expressou Boris Johnson, o passado não pode ser editado e não
podemos fingir que temos uma história diferente. Podemos, entretanto,
reconhecer as sujeições de Kardec aos limites paradigmáticos do seu tempo, sendo
ele um ser humano falível como todos nós. Não há razão para “santificá-lo” ou
“idolatrá-lo”, ainda que em muitos aspectos ele tenha conseguido superar modelos
vigentes em sua época. Vencido esse obstáculo podemos e devemos atribuir-lhe
todos os créditos pelo trabalho incansável, realizado nos últimos 12 anos de
sua vida em prol de uma filosofia libertadora, progressista e profundamente
humanista.
Não há
mais nos nossos dias espaços para tergiversações!
O
Espiritismo fundado por Allan Kardec foi um movimento vanguardista em meados do
século XIX, mas que lentamente se avolumou e se estruturou muito mais em torno
de instituições religiosas e, consequentemente, conservadoras, que tendem a
rejeitar toda e qualquer manifestação crítica às ideias do “codificador” e dos
espíritos que o assessoraram.
Com o
recrudescimento do extremismo conservador no mundo todo, impõe-se aos
movimentos espíritas progressistas que gravitam, como alternativa, em torno do
religiosismo, firmes posicionamentos sobre a cristalização do racismo individualista,
institucional e estrutural, conforme vêm concluindo as ciências sociais, embora
Silvio Almeida[4] diga que “o racismo é sempre estrutural” e
explica, “é um elemento que integra a
organização econômica e política da sociedade”.
Concluindo,
ainda que Kardec tenha nos legado alguns escritos racistas; ainda que estátuas
de ídolos históricos tenham sido depredadas pelo mundo a fora e outras
escondidas para protegê-las, precisamos escancarar o que sabemos e está
explícito na personalidade do nosso mestre, a fim de purgar o próprio
Espiritismo de suas mazelas, buscando estruturá-lo de forma sempre dinâmica e
progressista para enfrentar os desafios que se avizinham, diante da célere
evolução intelectual, tecnológica e social.
Despir
nossos ídolos, dirá muito mais de nós do que deles mesmos!
[Artigo publicado no Jornal Opinião
288, de setembro de 2020]
[1] Conhecido
como Big Floyd — nome que representa
seu grande porte físico —, George Perry
Floyd Jr. foi um homem afro-americano, 46 anos, que foi assassinado em Minneapolis,
Minnesota, no dia 25 de maio de 2020, estrangulado por um policial branco que se
ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem por supostamente usar uma nota
falsificada de vinte dólares em um supermercado. (https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/quem-era-george-floyd.phtml).
[2] Cemitério
Père-Lachaise, uma das atrações turísticas mais visitadas de Paris, com mais de
dois milhões de visitantes por ano, é o local em que está a sepultura de Allan
Kardec. (http://diretodeparis.com/pere-lachaise-o-cemiterio-mais-famoso-do-mundo/)
[4] Almeida, Silvio Luiz de – Racismo Estrutural
(Feminismos Plurais). Introdução. São Paulo. Polen, 2019.
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