Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina.
O
pior das discussões sobre os fundamentos do espiritismo se dá quando nos
afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse
ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos
justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se
desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica
impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se
faz inevitável.
A ideia da autonomia moral é alentadora. Antes se dizia: “quem o alheio veste na praça o despe”. Essa palavra é expressiva, mas parcial, pois não abrange um percurso mínimo de explicação de um fato. Bem compreendida, porém, fará sentido e então não será repelida.
O
advento do espiritismo trouxe uma nova visão, revolucionária, para a justiça
dita divina, mas, a princípio, talvez pelo afã de tentar aplicar a ideia nova a
todos os fatos do domínio da religião constituída, dogmática, se incorreu em
excessos, tanto para um lado quanto para outro, à direita e à esquerda.
“Deus
deita, mas não dorme”, “a justiça divina não falha” “quem não pagar aqui,
pagará do outro lado” – todas essas expressões derivadas de um sentimento de
pecado e punição, afeito às medidas dogmáticas do antigo “olho por olho, dente
por dente”, tiveram o seu imediato correspondente na ideia da interpretação
precipitada da reencarnação, desfigurando o foco principal que é, no caso desta
reencarnação, o progresso, a evolução do ser espiritual numa dinâmica que
envolve o ser coletivo, a vida em sociedade.
De
um lado, adotou-se uma ortodoxia: partiu-se para o entendimento equivocado de
que todos os sofrimentos na presente vida têm sua causa nos erros de vidas
passadas, logo, a reencarnação é feita para o indivíduo pagar esses erros.
Erros e pecados são sinônimos, então a ideia antiga permanece. Herculano Pires
chega a apresentar um exemplo: nasce uma criança com o braço defeituoso e logo,
diz, aparece um sabereta espírita para afirmar que é decorrente de um carma de
vidas passadas.
Ao
perceber-se a ambiguidade de tal interpretação, sua inabilidade para
compreender as novas ideias espíritas, criou-se, como contraponto, a noção de
que os sofrimentos da presente vida se devem às condições de vida material e
social somente e não a consequências punitivas do passado. O único tribunal a
julgar as ações individuais é o da consciência, logo não há punições para essas
ações emanadas de fora da consciência do próprio indivíduo.
A
ideia de uma justiça externa ao indivíduo capaz de estabelecer penas à sua
futura existência terrena em decorrência de existências anteriores está em
dissonância com o espiritismo. Ponto. Todavia, a ideia de que os sofrimentos da
presente vida decorrem unicamente das condições materiais e sociais (herança
genética, desigualdade etc.) não consegue responder nem convencer de fato.
Ponto.
Nem
sempre a linha reta é a menor distância entre dois pontos, bem como o caminho
do meio pode não ser a melhor vereda do viajante da evolução, especialmente
quando certas experiências necessárias já foram suficientemente realizadas.
Nesses casos, é até aconselhável tomar atalhos.
Sendo
a ideia de pecado e punição incompatível com a noção de autonomia e
livre-arbítrio, segue-se que se deve à consciência individual a ação de
resolver os conflitos criados por si e para si, os quais de alguma forma
perturbam e dificultam sua evolução. Aqui somam-se os erros cometidos, as
violências praticadas, os ódios e vinganças, ou seja, tudo aquilo que trava a
consciência do seu melhor equilíbrio, condição esta necessária para uma
reencarnação proveitosa.
A
base da evolução é conhecimento e amor. Ora, quando a consciência se apropria
dessa noção, a tendência é que busque destravar tudo aquilo que a impede de
caminhar, ou que a faz estacionar. É este um momento crucial, em que as
decisões implicam a busca das condições e recursos para avançar. A próxima vida
no corpo físico pode e deve incluir experiências que (1) modifiquem para melhor
o quadro moral individual ao eliminar a carga dos eventos negativos acumulados
em outras vidas e (2) permitam realizar construções positivas que conduzam o
espírito a estágios mais avançados de felicidade.
As
decisões individuais tomadas no sentido de refazer o passado perturbador da
consciência podem ser vistas como expiações, cumprimento do carma, pagamento de
pecados e coisas que o valham. Não importa o nome que se dê. A essência
residirá nessa compreensão de que são decisões do ser autônomo, tomadas por ele
no pleno exercício do seu livre-arbítrio, com vistas à sua libertação das
amarras morais que retêm ou aprisionam.
Do
outro lado, a decisão de viver experiências capazes de impulsionar o indivíduo
à frente é o complemento das decisões anteriores, da vivência de experiências
libertadoras. Há, então, aí uma espécie de complementaridade, pelo menos no que
diz respeito à média dos espíritos ligados ao planeta Terra em seu estágio de
mundo imperfeito.
De
tudo isso resulta que a libertação das amarras do passado e o impulso ao
progresso são do ordenamento da consciência individual. No entanto, eles só se
realizam na usina das relações sociais, em sociedade, com o outro, nunca com o
indivíduo apartado do outro. Daí a compreensão de que o avanço individual
precisa do meio social para se realizar, ao mesmo tempo em que o progresso
social precisa do indivíduo. Inevitável compreender que na reencarnação o ser
constrói o mundo para si e para o outro, de forma reciprocamente verdadeira.
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Wilson Garcia. São Paulo/SP. Jornalista e escritor, é presidente do
CPDoc, Ouvidor da Fundação Porta Aberta e Conselheiro da Fundação Maria
Virgínia e José Herculano Pires.
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