20 novembro 2023

Carta às filhas e filhos de Botos

      Rosana Santana*

        Como mulher e indivíduo pertencente à etnia negra, enfoco questões existentes entre o feminismo que para a mulher branca, em comparação com o feminismo para a mulher preta diverge, pois que é possuidor de outro viés, outras vertentes de enfrentamentos.
    Para introdução do tema faço minha reverência à Carolina Maria de Jesus, escritora brasileira, mulher negra, moradora da Favela do Canindé nos anos 1950, lugar que foi palco para a sua obra mais conhecida. Sem escolarização suficiente, pois teve acesso a apenas dois anos de aprendizado, escreveu em verso e em prosa. Dona de uma inteligência e aptidão natural para a arte de colocar em letras o cotidiano pobre, preto, sofrido, famélico, injusto, excludente e machista, pois que mãe solteira lutou para vestir, educar, nutrir, educar, três filhos sozinha, sem a ajuda dos pais destes.
    Sendo um retrato fiel da solidão da mulher negra por esse Brasil afora, o diário da fome, que é a realidade exposta nas linhas de Carolina, nos ilustra com clareza, a opressão, sofrimento, sedução e abandono a que muitas de nós somos relegadas, por um sistema misógino e racista.
    

Ser mulher não é exatamente ter consciência de sua condição de vítima da opressão e do machismo, aliás, a submissão a esse sistema é a forma mais melancólica que observo, quando percebo em muitos casos não haver reação e sim conformismo. É claro que muito menos na mulher preta que teve ou tem acesso à educação formal, do que naquela pobre periférica que não teve oportunidade de escolarização por diversos motivos.
    Vivenciar na pele o racismo estrutural desde a infância é algo que, ou nos fortalece, ou nos amedronta e nos coloca numa situação de submissão e negação enquanto ser humano igual aos demais e, portanto com direitos e deveres iguais ou pelo menos que deveriam ser desde que somos não de raças diferentes, mas da mesma espécie, a humana. Mas se ser mulher não significa necessariamente saber da condição feminina como citei acima, mulher negra então nem de longe sabe que aquele príncipe branco de olhos claros que está nos contos de fadas é um homem cisgênero, racista e misógino que em muitos casos se aproveita dela e lhe deixa um filho no ventre para desaparecer no mundo. Falo de uma realidade que observei ao longo de minha vivência na periferia de São Paulo. Hoje sei que há muitas frentes de conscientização desse círculo cruel a que a mulher preta sempre foi submetida desde a diáspora africana e os 400 anos de escravidão. Quando falo da luta para ser vista como gente, cito as mulheres destaques nas escolas de samba (mulatas), uma mulher linda, seminua, num requebrado sensual, que serve como incentivo ao turismo sexual. O termo mulata (o) vem de mula, animal híbrido, sem pureza de raça que serve somente para carregar carga. Esse termo desqualifica a preta de pele mais clara, deixando evidenciado que ela é mestiça, outro termo racista para definir a pessoa oriunda de mistura de raças. A preta de pele mais escura é a faxineira, a serviçal para trabalho mais pesado, o resquício que o cativeiro deixou ainda entranhado em nosso cotidiano.
    Em se tratando do homem negro, pois que há de se pensar, por que a negra não se relaciona somente com homens de sua etnia para não sofrer preconceito? Mas não é bem assim, o homem negro também vem marcado pelo preconceito racial há séculos, ele quer se livrar dessa pecha e demonstrar que venceu por isso ele tem que ter uma mulher branca, de preferência loira. Os cabelos platinados lhe conferem poder e emancipação. A mulher negra desde a infância sofre preconceito maior do que os meninos, não é escolhida para o time, não dança quadrilha porque não tem par, na adolescência ela não namora, é confidente das amiguinhas brancas. Especifico, entretanto que este relato vem das décadas de 1970, 1980 do século XX, vivência que eu tive e que reflete nas mulheres que da minha geração e de gerações anteriores como a de Carolina Maria de Jesus.
    Muitas de nós mães independentes, solteiras e sozinhas tentam outro relacionamento, se frustram sempre e ficam com mais um rebento, multiplicando os "filhos de Boto". A lenda amazônica conta que um golfinho cor de rosa, emerge dos rios à noite transformado num atraente rapaz para enganar moças incautas. Sou uma "filha de boto", assim como minhas irmãs e os filhos e filhas da escritora. Neste Brasil da atualidade, não se extinguiram as Carolinas, fome e a solidão se perpetuam, a luta de tantas mulheres continua, sobreviver, alimentar as crias, enfrentar trabalho árduo, vencer o assédio e o preconceito, desejar aos filhos e filhas um futuro melhor que o seu.
    Allan Kardec, no Livro dos Espíritos, nos ensina que: “Todos os seres humanos são iguais perante a Deus, a inferioridade moral da mulher em certas regiões vem da predominância injusta e cruel que o homem assumiu sobre esta, e é resultado das instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza entre homens moralmente pouco evoluídos”.
    Concluo desejando que a evolução dos seres humanos tenha uma rápida aceleração para que preconceito e injustiça social sejam banidos da face do planeta Terra em um futuro muito próximo.
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* Rosana Santana - Bibliotecária Graduada pela Fundação Escola de Sociologia e Política – FESP, Especialização em Mediação de Leitura pelo Instituto a Cor da Letra, Coordenadora dos Pontos Municipais de Leitura, pertencentes à Coordenadoria do Sistema Municipal de Bibliotecas de São Paulo, membro do GELP – Grupo Espírita Livre Pensador de São Paulo.

Um comentário:

Ricardo Nunes disse...

Muito esclarecedor e sensível o artigo. Muito obrigado.Ricardo Nunes